O Padrão da Oliveira. Bilhete postal .Ed. L. Oliveira & C.ª. Com o apoio de Nuno Saavedra |
[Continua daqui]
Se
perguntarmos a alguém que tenha crescido em Guimarães depois da
segunda metade do século XX como se chama aquele pequeno monumento
gótico que está na Praça da Oliveira, entre a Igreja e a Oliveira
propriamente dita, a resposta será pronta e, provavelmente, aflorada
por um sorriso irónico a sublinhar
a ignorância de quem pergunta:
Padrão do Salado. É
natural que assim seja, já que sempre
lhe ouvimos chamar assim.
A este propósito, recordo uma reflexão que partilhei há alguns anos, quando escrevia sobre um outro assunto:
A memória dos homens abarca o tempo das
suas vidas, mas presume que encerra em si toda a eternidade. A partir
da nossa experiência vivida, tendemos a assumir que aquilo que
sempre vimos, até onde as nossas lembranças alcançam, sempre
existiu. Porém, a Terra não começou a girar movida pelo embalo do
primeiro sopro da nossa respiração. O tempo histórico tem muitas
camadas e nós apenas habitamos uma delas, o nosso tempo.
Se
é verdade que muitos de nós poderão dizer que sempre
ouviram chamar de Padrão do Salado ao singelo monumento que abriga
a cruz que em 1342 ali mandou colocar Pedro Esteves, também é
verdade que, antes do meio do século XX, que eu saiba, nunca
foi chamado por tal nome.
Está documentado que o cruzeiro foi colocado a par da Oliveira no dia 8 de Setembro de 1342,
na sua base tem o escudo do rei D. Afonso IV, tal como sobre os
vértices dos quatro arcos que formam a estrutura abobadada que o
cobre. Por outro lado, também é sabido que o rei D. Afonso IV participou na Batalha do Salado, travada perto de Cádis no dia 30 de Outubro de 1340. Séculos mais
tarde, alguns autores concluíram, sem demonstração à luz das fontes históricas, que o padrão foi mandado erigir por
D. Afonso IV, para celebrar a participação portuguesa na Batalha do
Salado.
Em 1840, num texto que publicou na revista O Panorama, Alexandre Herculano separa a cruz do padrão e defende que os escudos que estão sobre os arcos demonstram que a estrutura gótica se fizera por mandado deste nosso monarca, em momento incerto, mas posterior à inauguração da cruz. Em 1861, um viajante francês, Olivier Merson, quando relatou a sua passagem por Guimarães, escreveu que o Padrão é devido à piedade de Afonso IV, cujas armas decoram os frontões do pequeno edifício. No mesmo ano, Inácio de Vilhena Barbosa, publicou no Arquivo Pitoresco um texto em que afirma que o padrão teve por fundador a el-rei D. Afonso IV, embora entenda o monumento de modo diferente do de Herculano, quando o descreve como um cruzeiro coberto de abóbada de pedra. José Augusto Vieira, no Minho Pitoresco, publicado em 1886, veicula a mesma ideia: o padrão, tem como fundador a el-rei D. Afonso IV e é um curioso cruzeiro de granito, coberto por uma abóbada de pedra, sustentada por quatro elegantes arcos em ogiva.
Aqueles
autores baseiam-se nos escudos que estão afixados no monumento para
sustentarem que o monumento foi mandado construir por D. Afonso IV. Porém, se o
padrão foi
ordenado pelo rei,
é muito de estranhar não estar nele afixada qualquer inscrição que lhe sirva
de memória, nem se conhecer um único
documento contemporâneo ou de data
próxima que o
ateste. Bem pelo contrário: como sabemos, a inscrição que está no cruzeiro
diz algo bem diferente do que presumem aqueles autores. Os escudos do
padrão provam que a obra foi erguida durante o reinado de
Afonso IV, mas não que tenha sido aquele rei a ordenar a sua
construção.
Seja
como for, sublinhe-se que nenhum dos autores citados faz qualquer
ligação do padrão à Batalha do Salado. Do
que conhecemos, essa associação terá sido
aventada
pela primeira vez por
Eduardo de Almeida, em 1923,
em
passant, na
sua obra Romagem
dos séculos (vol. I,
pág. 20):
O
nosso Afonso IV ( 1340) passa por ter visitado
a Senhora da Oliveira,
logo depois do Salado
mandando construir em memória deste
facto, O baldaquino
que está junto ao templo da Virgem,
e dentro do qual existe uma notável cruz normanda, que é um modelo
da melhor arquitectura
votiva do século XIV.
No
entanto, o ilustre escritor vimaranense não diz em que se fundamenta
para sugerir que Afonso IV teria passado por
Guimarães em 1340, ocasião em que, no seu entender, teria mandado construir o Padrão.
Apenas remete para
os Apontamentos
do
Padre
António José Ferreira Caldas, que sobre o assunto, somente diz
que:
Quase
defronte da porta principal da igreja de Nossa Senhora da Oliveira, e
como a terminar o adro da mesma igreja, levanta-se o padrão de Nossa
Senhora da Vitória, mandado ali erigir no reinado de D. Afonso IV.
Será
preciso chegar a meados do século XX para se ver assumida a tese de
Eduardo de Almeida de que, como vimos, se ignoram provas que a validem. Em 1949, o Padrão foi
classificado como monumento nacional, aparecendo designado no
respectivo decreto (n.º 37 366,
publicado no Diário do Governo, 1.ª série, n.º 70, de 5 Abril)
como padrão
comemorativo da batalha do Salado.
Em 1953, no seu Guimarães — Guia de Turismo, Alfredo Guimarães
também perfilha a ideia de Eduardo de Almeida, sem nada acrescentar
que a fundamente. Porém, naquele mesmo ano, o monumento continuava a
chamar-se Padrão de Santa Maria das Vitórias. E assim continuará a ser chamadas, nas duas décadas seguintes, nas notícias que assinalavam a
celebração da Festa do Pelote, a cada 14 de Agosto.
A
primeira vez que nessas notícias aparece a designação Padrão do
Salado é no relato da
festa de 1970,
publicada no Notícias de Guimarães de 21
de Agosto:
Porém, no mesmo jornal, na nota que uma semana antes anunciara a
festa, o monumento ainda se chamava Padrão de Nossa Senhora das
Vitórias, o que revela que a associação ao Salado ainda não
estava assente:
Daí
para a frente, o título de Padrão do Salado ganhará firmeza, como
se percebe de um texto sobre o património da cidade publicado em por
José
Moura Machado no Notícias de Guimarães:
Na minha já longa vida de mais de
três quartos de século, assisti ao destroço de imóveis como: —
o Convento do Anjo, a Igreja de S. Paio, o casario da Praça de
Santiago, as casas alpendradas que iam da esquina fronteira ao Padrão
do Salado até ao cunhal da casa do grande bairrista João de Melo e
outras mais que, neste momento, não me ocorrem.
E Padrão do Salado continua a ser, sem
nada que se conheçam os fundamentos históricos de tal designação, excepto uma (quase)
coincidência cronológica, como notava, há mais de uma década,
Fernando
Teixeira:
Não há, que se saiba, qualquer
documento antigo que justifique esse nome: apenas a proximidade
temporal o liga à batalha do Salado: 1340 — data da batalha do
Salado; 1342 — data do levantamento do padrão.
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