A Oliveira, por Vilhena Barbosa

A Igreja da Colegiada e o Padrão da Oliveira, gravura de Pedroso sobre desenho de Nogueira da Silva. Arquivo Pitoresco, 1863. p. 353.
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Este santuário é sem dúvida o mais célebre do nosso país. Pelo menos nenhum outro reúne tantas condições de celebridade. Origem antiquíssima; uma lenda maravilhosa; uma santa imagem, cujos milagres foram apregoados por muitas gerações; honrada memória do fundador da monarquia; gloriosos padrões de um dos maiores feitos dos nossos antepassados e de uma das mais notáveis épocas da história de Portugal — tais são essas condições.
O texto que se segue, da lavra do historiador Inácio Vilhena Barbosa, descreve a Colegiada e o Padrão da Oliveira de Guimarães. Foi publicado, legendando a gravura que encima esta nota, no volume de 1861 da revista Arquivo Pitoresco.

Vale a pena ler, como tudo o que este autor escreveu sobre o património português. Aqui fica, na íntegra: 

Este santuário é sem dúvida o mais célebre do nosso país. Pelo menos nenhum outro reúne tantas condições de celebridade. Origem antiquíssima; uma lenda maravilhosa; uma santa imagem, cujos milagres foram apregoados por muitas gerações; honrada memória do fundador da monarquia; gloriosos padrões de um dos maiores feitos dos nossos antepassados e de uma das mais notáveis épocas da história de Portugal — tais são essas condições.
Correndo o ano de 927, a condessa D. Mumadona, tia de D. Ramiro II, rei de Leão, tendo enviuvado do conde D. Hermenegildo, resolveu edificar um mosteiro onde se recolhesse.
Obtidas as licenças precisas, deu princípio à fundação, numa quinta que possuía na província do Minho, a pouca distância do rio Ave e próxima do ribeiro Selho. Chamava-se a quinta de Vimarães. Mais acima ficava uma pequena aldeia do mesmo nome.
Concluído o mosteiro, foi dedicado à Virgem Maria e habitado por frades e freiras, com as devidas separações, sendo unicamente comum a igreja.
Recolheu-se logo D. Mumadona ao seu mosteiro, que em breve foi atraindo em volta de si, pelas liberalidades da fundadora, os pobres moradores da vizinha aldeia.
Passado algum tempo, querendo a condessa prevenir-se contra qualquer invasão de moiros, mandou construir uma fortaleza torreada, sobre uma pequena eminência perto do mosteiro, no sítio da antiga aldeia de Vimarães.
Eis aqui a origem do santuário de Nossa Senhora da Oliveira, da vila, hoje cidade, de Guimarães, e do famoso castelo onde estabeleceram a sua corte o conde D. Henrique e sua esposa, a rainha D. Teresa, e onde nasceu o fundador da monarquia, o invicto rei D. Afonso Henriques.
O conde D. Henrique alcançou do papa a extinção do mosteiro e a erecção da sua igreja em colegiada com dom prior e cónegos, à qual deu as honras de capela real. E D. Afonso Henriques ainda lhe obteve novas prerrogativas, com que ficou quase uma sé.
Até este tempo não tinha denominação particular a imagem de Nossa Senhora, que era o orago daquela igreja. Porém no ano de 1380 começou a intitular-se Nossa Senhora da Oliveira, em memória do milagre que fez reverdecer a oliveira que, tendo sido transplantada para defronte da porta da igreja, secara e se conservara por longo tempo seca.
Desde então cresceu em fama de milagres a santa imagem. Um raminho da oliveira era o condão milagroso. Por isso, quando os destinos de Portugal estiveram dependentes da sorte das armas nos campos de Aljubarrota, o mestre de Avis, aclamado pelo povo defensor do reino e pelas cortes de Coimbra rei, encomendou-se cheio de devoção a Nossa Senhora da Oliveira de Guimarães, fazendo voto solene de ir a pé em romaria ao seu templo,e daí fazer-se pesar a prata para lha oferecer em alfaias e vasos sagrados, se lhe concedesse a vitória contra os inimigos da pátria.
Conseguiu D. João I o que desejava. Não mencionam os nossos anais vitória mais gloriosa que a batalha de Aljubarrota, pela desproporção dos vencedores para com os vencidos; nem mais decisiva e auspiciosa, porque assegurou a independência de Portugal e consolidou a nova dinastia, que tanto honrou e engrandeceu esta terra.
D. João I cumpriu à risca o seu voto, e fez mais. Ofereceu a Nossa Senhora da Oliveira o precioso oratório de prata e doze anjos do mesmo metal, que haviam pertencido a D. João I de Castela e que foram tomados com toda a sua recâmara naquela memorável batalha. E depois, não contente de fundar, em honra da Virgem e também em agradecimento e cumprimento de outro voto pelo triunfo alcançado, o sumptuoso mosteiro aa Batalha, determinou que um novo e mais grandioso templo substituísse a igreja fundada pela condessa Mumadona, que ainda existia carregada de anos e ameaçando ruína.
Começou-se a reedificação no ano de 1387, e aos 23 de Janeiro de 1400 sagrou a capela-mor o bispo de Coimbra D. João, assistindo a esta solenidade D. João Manrique, arcebispo de Santiago de Galiza, D. Rodrigo, bispo de Ciudad Real, el-rei D. João I, a rainha D. Filipa de Lencastre, sua mulher, e seus filhos os infantes D. Duarte, D. Pedro, D. Henrique e D. Afonso, que mais tarde foi criado conde de Barcelos e depois 1.º duque de Bragança. No ano seguinte, foi sagrado o corpo da igreja.
Este templo era muito inferior ao da Batalha, e conta-se que o arquitecto, João Garcia, primeiro caíra no desagrado de el-rei por não ter satisfeito ao que o soberano lhe encomendara. Contudo, algumas partes se viam no edifício de muita riqueza e primor, como eram o grande espelho da frontaria e as janelas da igreja, principalmente as vidraças, que mostravam em excelentes pinturas muitas e variadas imagens, e em todas o escudo das armas de D. João I e o da rainha sua esposa.
Conservou-se toda esta fábrica até ao ano de 1670 em que o príncipe D. Pedro, então regente e pouco mais tarde rei, fez demolir a capela-mor por estar danificada e ser acanhada, mandando construir a actual. E em nossos tempos, há dezoito anos, querendo os cónegos aformosear com modernices a velha igreja de D. João I, rasgaram-lhe as ogivas das naves em arcos mais elevados, de volta redonda; mascararam com estuques e doirados as suas venerandas e góticas feições; apagaram, enfim, com vandálica profanação, tudo quanto no interior do templo recordava o nome ilustre do fundador, e o grande feito que deu origem a esta segunda fundação.
Está situada a Real Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira em uma praça não muito espaçosa, mas que deixa o templo bem desafrontado.
A fachada principal tem uma única porta e, sobre ela, uma grande janela ou espelho; e é tudo quanto lhe resta do monumento de D. João I. O mesmo desacerto e mau gosto que presidiram à última reconstrução interior da igreja, vieram estampar-se na frontaria. No cunhal, puseram uma pilastra com seu capitel jónico; e, no lugar do arrendado espelho, que provavelmente se acharia deteriorado, levantaram parede de pedraria lisa com uns mesquinhos óculos envidraçados.
Pois aquela janela merecia bem, não só que a não deturpassem com remendos de moderna e prosaica arquitectura, mas que se fizesse um esforço, um sacrifício até, para que fosse restaurada, restituindo-lhe toda a sua graça e beleza primitiva.
É tão formosa, e de tão elegante e delicado artifício que, se estivera no mosteiro da Batalha, aí mesmo, nesse museu de primores de arte, avultaria e sobressairia.
É formada esta janela por vários arcos ogivais, que se vão abrindo no grosso da parede, sempre diminuindo de altura e largura. Os arcos são guarnecidos de estátuas de santos de vulto inteiro, postas sobre peanhas de brincados feitios e cobertas por baldaquinos rendilhados. Fazem divisão a estes arcos festões vazados de flores e frutos, com tanto esmero esculpidos, que mais parecem uma renda subtil, que lavores em pedra. Até aqui nos auxiliou a nossa memória, porém talvez ainda falte alguma coisa para se poder fazer uma ideia justa desta obra singular. Infelizmente, quer nas estátuas, quer nas rendas, revelam-se a acção destruidora do tempo e o desleixo dos homens.
A torre dos sinos, que se ergue ao lado do frontispício do templo, ressaltando dele, não é a que mandou fazer o mestre de Avis. Esta foi demolida em 1515, e no seu lugar deu começo à actual o doutor Pedro Esteves Cogominho, ouvidor das terras do duque de Bragança. Falecendo, porém, quando as obras apenas tinham chegado a um terço, continuou-as, e acabou a torre, seu filho, o doutor Diogo Pinheiro, comendatário de diversos mosteiros, prelado de Tomar, dom prior de Guimarães e posteriormente bispo do Funchal.
É ocupado todo o pavimento baixo da torre por uma capela com porta para a igreja e outra para a praça, ornada de colunas e mais diversidade de enfeites, vedada com uma grade de ferro.
Encostado à torre, por toda a sua frente, está um chafariz com grande tanque. Por cima dele e aos lados da porta da capela, avultam o escudo de armas de D. João I e o brasão de Guimarães, que se compõe da imagem da Virgem Maria e de uma oliveira. Sobre a porta, está o brasão dos Cogominhos.
No meio da capela, vêem-se os mausoléus do fundador, Pedro Esteves Cogominho e de sua mulher Isabel Pinheiro. Estão unidos e são de pedra toda lavrada em flores, arabescos e outras diferentes invenções. Sobre as tampas estão deitadas as estátuas dos dois cônjuges, trajados de gala ao uso da época, circunstância pouco comum no nosso país e muito apreciável para a história dos costumes. Uma grade de ferro alta cerca os dois túmulos. Junto da cabeceira destes, levanta-se um altar de pedra, com a imagem do crucificado entre as de Nossa Senhora e de S. João Evangelista.
Ao lado da porta principal da igreja, à direita de quem entra, está uma lápida embebida na parede com as armas de D. João I, que mostram terem sido iluminadas e doiradas. Seguram no escudo real dois anjos, e um terceiro, sustentando a coroa, serve de timbre. Por baixo lê-se a seguinte inscrição: Era de MCCXXV anos 6 do mez de maio foy começada esta obra por mandado del-rey dom João dado pela graça de Deos a este Reyno de Portugal: este Rey Dom João houve batalha real com El-Rey Dom João de Castela nos campos d'Aljubarrota, e foy della vencedor, e à honra da vitória, que lhe deu Santa Maria, mandou fazer esta obra por João Garcia, mestre de pedraria.
A data de 1425, que se lê nesta inscrição, é a era de César, que corresponde ao ano de 1387 da era de Cristo.
Entremos, enfim, na igreja. Se desviarmos todas as ideias do monumento gótico, parecer-nos-á o templo belo, elegante e bem decorado. Apesar dos estuques que o cobrem todo, pode todavia acrescentar-se a estes epítetos os de rico e majestoso, pela profusão do oiro que lhe brilha desde a base das paredes até à maior altura das abóbadas das suas três naves. Várias janelas e uma esbelta cúpula derramam abundante luz por toda a igreja, que é espaçosa e bem proporcionada.
Posto que os olhos se enlevem na perspectiva geral do templo, não encontrarão certamente obra de arte que mereça exame e descrição, a não serem os quadros que formam os retábulos dos oito altares do corpo da igreja, os quais foram pintados em Lisboa, há uns treze anos, pelo sr. Joaquim Rafael, lente de pintura da nossa academia de Belas Artes.
Antes, porém, de passarmos à capela-mor, temos de mencionar uma antigualha de subido valor histórico. É nada menos que a pia onde o vencedor de Ourique recebeu as águas do baptismo das mãos de S. Geraldo, arcebispo de Braga. Esta pia é de granito, toscamente afeiçoada e sem ornato algum. Se a memória nos não falha, ocultaram-lhe com doiraduras algumas partes do granito, que sete séculos e meio tem enegrecido. Julgaram que acrescentariam riqueza de oiro ao que por sua valia tira todo o valor ao oiro!
A pia está metida num nicho, aberto na grossura da parede e fechado com grades de ferro. Diz ali um letreiro. Nesta pia foi bautisado ElRei D. Affonso Henriques pelo Arcebispo de Braga S. Giraldo. Em outro letreiro lê-se: Esta obra mandou fazer Dom Diogo Lobo da Sylveira, indigno Prior d’esta igreja, no ano do Senhor de 1604.
Supomos ser este o ano em que a pia foi trasladada para este templo, da gótica e humilde igreja de S. Miguel, que serviu de paróquia à antiga aldeia de Vimarães, depois de capela real ao conde D. Henrique e à rainha D. Teresa, e que ainda lá se conserva de pé, próximo do castelo, apesar das injúrias de nove séculos.
O que há mais digno de menção na capela-mor da colegiada é a imagem de Nossa Senhora da Oliveira, que tem realmente muita antiguidade, ainda que se não aceite a que a lenda lhe atribui.
Segundo esta refere, foi o apóstolo S. Tiago que a trouxe a Guimarães, colocando-a num templo gentílico que aí havia, dedicado a Ceres, o qual o dito apóstolo purificou e consagrou à Virgem. Pretendem alguns antiquários que a igreja paroquial de S. Paio de Guimarães ocupa o lugar ao antigo templo de Ceres. Termina a lenda dizendo que a condessa Mumadona levara depois a sagrada imagem para o seu mosteiro.
É de roca esta senhora, e tem riquíssimos vestidos, e muitas e preciosas jóias e adereços. A grande coroa, com que se adorna nos dias de festa e que pesa bastantes marcos, é de oiro maciço e cravejada de diamantes. Nessas ocasiões também se enfeita, além de outros ornatos, com um grande peitoril todo de pedras finas, e com a chamada meada de Nossa Senhora, que consiste em numerosos e compridos cordões de oiro, em forma de meada, tão pesada, que quase custa a sustentar com uma só mão, a qual usa em volta da cintura, caindo o resto pela frente dos vestidos até aos pés. A imagem tem muito mais de um metro de altura.
Na sacristia guarda-se o magnífico tesoiro de que por vezes temos falado neste jornal descrevendo algumas das suas alfaias. Esperámos ocasião mais oportuna para tratar novamente de tão curioso objecto.*
Por detrás da capela-mor está o velho claustro com vários túmulos antigos. Contíguo ao claustro, fica o palácio dos priores, com seu pátio e porta para a rua de Santa Maria. O edifício nada tem de notável. É pequeno e irregular. Todavia, tem o interesse histórico de ter servido de habitação a el-rei D. João I.
Esta real e insigne colegiada, com o seu dom prior e mais dignidades, logrou muitas preeminências, regalias e avultados rendimentos. Tudo isto porém lhe tem cerceado a inconstância dos tempos e das coisas políticas.
A dignidade de dom prior de Guimarães tem sido exercida por muitos indivíduos das principais famílias de Portugal; e ainda hoje é mui considerada na jerarquia eclesiástica. No catálogo destes prelados figuram dois príncipes da casa de Bragança, D. Fulgêncio, filho do duque D. Jaime, e D. Alexandre, filho do duque D. João I.
Resta-nos falar dos dois monumentos que se erguem na praça defronte do templo de Nossa Senhora da Oliveira. O que fica mais perto do adro é denominado o padrão e teve por fundador a el-rei D. Afonso IV. É um cruzeiro coberto de abóbada de pedra, que se sustenta em quatro arcos, que a seu turno se firmam em delgadas colunas e nos grossos pilares que formam os quatro ângulos exteriores. Junto ao vértice de cada um dos arcos estão os escudos de armas del-rei D. Afonso IV.
No meio do padrão, debaixo da abóbada, admira-se um lindo cruzeiro de pedra, no gosto gótico, com as imagens de vulto de Cristo crucificado, de Nossa Senhora, de S. João Evangelista, de S. Dâmaso, papa, filho de Guimarães, de S. Torcato, arcebispo de Braga, de Nossa Senhora do Rosário, de S. Filipe, apóstolo, e de S. Gualter.
Na hástea da cruz está uma lâmina de bronze com a inscrição que segue:
A onra d Deus e d Scã Maria, e por esta Vila mais onrada ser e o Poboo, fez fazer esta obra Pero Steves de Guimarães, mercador em Lisboa, filho de Estevão Gcia, e de Mta Pez na EMCCLXXX anos VIII dias de setembro.
M.L.R.O.F.E.X.
Debaixo da mesma abóbada, encostado ao arco fronteiro à igreja, está um altar com uma imagem de Nossa Senhora da Vitória, em comemoração da batalha de Aljubarrota.
Conforme um documento contemporâneo, aquele cruzeiro foi feito na Normandia, transportado e colocado ali por Pero Esteves.
Próximo do padrão vê-se a oliveira de Nossa Senhora cercada de grades de ferro, as quais assentam sobre um soco com dois degraus.
A oliveira da lenda há muito que não existe. A actual é uma árvore nova.
I. DE VILHENA BARBOSA.

* Vid. pág. 5, 41, 137 e 216 deste volume.
in Arquivo Pitoresco, vol. IV, Lisboa, 1861, pp. 353-355.


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