"Miolo" verde do quarteirão Caldeiroa-Camões-Liberdade. |
Dizem-me que a Câmara
Municipal de Guimarães estará em vias de tomar posse administrativa das parcelas
do miolo entre as ruas de Camões, da Caldeiroa e da Liberdade com cujos
proprietários não conseguiu chegar a entendimento, tendo em vista a construção
de um parque de estacionamento cuja necessidade está por demonstrar e que, a ser
construído, destruirá uma significativa mancha verde e, acima de tudo, um modo
de vida característico de um quarteirão histórico da cidade, que persiste por
trás das fachadas que confrontam com as ruas. E isto na ausência do debate
público que um projecto com tal natureza e dimensão impõe. Confesso que não
estava habituado a que, em Guimarães, as coisas funcionassem assim.
No início do
último quartel do século XX, os autarcas eleitos pelo povo tinham um gosto
muito particular em erguer obra nova, na pressa de se cortar com um passado de
atraso e pobreza que se queria deixar para trás. Por essa altura, quem chegava
ao poder municipal queria deixar a sua marca. E os empreiteiros lá estavam,
prontos a colocarem-se ao seu serviço (no final, ficava sempre por saber quem é
que estava ao serviço de quem). Esta coligação do progresso entre autarcas e empreiteiros, foi particularmente activa
em muitos concelhos, de que Braga será o exemplo que nos é mais próximo. Em Guimarães
essa fúria construtiva também andou
no ar, mas nunca se concretizou. É que, até ao início da década de 1990, altura
em que a consciência da salvaguarda do património começava a ser consensual,
Guimarães, à falta de maiorias absolutas na vereação, foi sendo governada por
uma espécie de geringonça, em que as
decisões tinham, inevitavelmente, que ser partilhadas por mais do que uma força
política. Essa é a principal razão que explica que o lobby do betão não tenha tido em Guimarães as facilidades para realizar
negócios suculentos que encontrava noutras partes.
Entretanto, foi-se
consolidando a percepção da importância da preservação do património
construído, que se foi tornando numa espécie de culto local partilhado por
(quase) todos. Para tal, muitos deram o seu contributo, como o Dr. José de
Moura Machado, num texto de 1980 que aqui recordo num tempo em que, aparentemente, se
vão esquecendo muitos dos ensinamentos do passado.
Preservação do
Património Urbanístico
Pelo Dr. José
Moura Machado
O passado,
concretizado naquilo que executaram os que nos precederam, definindo a época em
que viveram, tem de ser respeitado e acarinhado, sob pena de, actuando em sentido
oposto, defraudarmos a História, privando-a de elementos, os mais positivos,
que presidiram à sua elaboração e tanto contribuem para a sua compreensão e análise,
por vezes, mesmo, com valiosas funções correctivas.
Quero referir-me à
preservação a observar no sector urbanístico, tanto nas cidades como nas vilas
e aldeias.
Em todos estes
agregados deveriam fazer parte das suas estruturas manchas de carácter
arqueológico, bem nítidas, a traduzirem um pouco do aspecto que apresentaram
outrora.
E digo manchas,
porque normalmente as cidades, vilas e aldeias têm vindo através dos tempos a
dilatar-se, e a cada época deveria corresponder, nessas localidades, o
respectivo tipo de arquitectura.
A preservação das construções
das diferentes épocas, acusando os estilos e as características destes no
domínio do regional, daria origem a belos bairros bem definidos e devidamente
enquadrados, os quais seriam magníficas páginas documentais, com projecção na
cultura e na formação estética das populações.
Deste modo,
teríamos as terras apresentando um aspecto urbanístico como que um axadrezado —
história viva da sua evolução.
Nada disto,
todavia, aconteceu e, pelo contrário, verificou-se a constante preocupação de destruir
o que para trás se fez, para no seu lugar colocar o que se criou de novo.
Longe do aceitar,
por absurda e criminosa, qualquer solução de continuidade na ânsia criativa do
homem, penso, porém, que a preservação por parte deste do que de mais válido
foi levado a efeito pelos seus antepassados, só vem atestar do nível de
superior cultura que preside àquilo que recentemente cria.
Pelo que me foi
dado ver em vários países, sou levado a concluir que existe, na actualidade,
uma séria preocupação na conservação das construções com valor arqueológico,
donde resultam bairros, como o Bairro Gótico, em Barcelona, o de Santa Cruz, em
Sevilha, etc.
Em Itália, a
maioria das cidades apresenta um aspecto de preservação que constitui um
encanto para o turista, sempre interessado em visitar o “País da Arte”.
O mesmo poderia
dizer da Grécia, Áustria, França, Bélgica, Holanda e outros países; mas é na
Inglaterra onde este trabalho de preservação atinge um nível de cuidado e rigor
extraordinários.
Entre nós, infelizmente,
o atraso é manifesto; e tal é devido à falta de informação acerca do que está relacionado
com a Arte e, consequentemente, não se criou na nossa gente um autêntico
sentimento, aquela sensibilidade que se traduz na obtenção dum clima estético indispensável.
A ausência de
curiosidade em acompanhar a evolução das artes plásticas, conduz a situações
tremendas de desorientação, inconcebíveis e muito para lamentar.
Ainda há anos
ouvia da boca de pessoas que, pela sua formação académica, seria de esperar a
apresentação de um outro pensar — que um famigerado projecto (miscelânea
desequilibrada de estilos) destinado para os Paços do Concelho, fosse levado a
cabo, quando um tal projecto não teria, naquele momento, guarida — disso estou
certo — em cidade alguma do um país civilizado.
Em Portugal, Évora
é uma excepção, onde se fez obra quase perfeita. Lisboa e Porto, apresentam no
campo da preservação falhas indesculpáveis, tratando-se, como se trata, das
duas maiores cidades do país.
Guimarães, que eu
tanto desejaria ver como uma segunda Évora, ou uma Santiago de Compostela, para
o que lhe não escasseavam elementos, está hoje reduzida a um pequeno espólio
que, todavia, pode e deve ser acarinhado.
Na minha já longa
vida de mais de três quartos de século, assisti ao destroço de imóveis como: —
o Convento do Anjo, a Igreja de S. Paio, o casario da Praça de Santiago, as
casas alpendradas que iam da esquina fronteira ao Padrão do Salado até ao
cunhal da casa do grande bairrista João de Melo e outras mais que, neste
momento, não me ocorrem.
Posteriormente,
fez-se a “limpeza” da Rua de S. Dâmaso, eliminando, além de outras casas, os
preciosos exemplares localizados por detrás da igreja, bem como o Passo que
ladeava este templo, o mesmo sucedendo ao Passo do Largo dos Laranjais, de
cujas pedras e recheio não tenho notícias.
Enfim, um grosso
volume contendo uma obra de trágico sabor, expressão duma deplorável ausência
do cultura e sensibilidade.
Mas uma das destruições
mais nefastas foi a demolição do passo da histórica muralha da cidade que
ladeava a antiga Rua dos Palheiros, actual Avenida General Humberto Delgado.
Não se admite que
tal se efectuasse no decénio do quarenta deste século, quando, nessa altura,
para cúmulo da ironia, se procedia à campanha de restauro dos monumentos.
Coincide mesmo o
referida demolição com o momento em que se procedia à reconstrução do Paço dos
Duques!...
Isto é
inacreditável, mas infelizmente passou-se.
Deixemos, porém,
este passado, não multo distante, e procuremos, agora, evitar actuações desse jeito,
preservando devidamente o que de válido ainda nos resta.
Para tal, há que proceder
com conhecimento e cabeça, amparando as encantadoras casas existentes, dos
séculos XVII e XVIII, com as suas belíssimas varandas de balaústres torneados e
demais elementos que nessas casas se integram.
É tarefa não muito
complexa e relativamente económica, donde resultaria — disso estou convicto — o
melhor cartaz turístico e uma sensível modificação, no domínio da cultura, do
ambiente em que vivemos.
Notícias de
Guimarães, 21 de Novembro de 1980
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