Fernando José Teixeira (Guimarães, 1937 - Guimarães, 2018) |
Ontem
recebi uma mensagem de um amigo que dizia, simplesmente, “Fernando
Teixeira já não está entre nós". A notícia triste e, pelo menos
para mim, completamente inesperada, está
longe de ser verdadeira. Fernando José Teixeira continuará entre
nós enquanto perdurar a sua memória nos que o conheceram. E
continua, e continuará viva, através da sua obra. Para sempre.
No
prefácio de um dos seus livros, Fernando Teixeira recordava a
sentença do povo que diz que “ninguém ama verdadeiramente o que
não conhece”. De tanto amar a sua terra, dedicou muito do seu
tempo a conhecê-la melhor, em especial nas últimas décadas da sua
vida, tempo em que passou muitos dos seus dias entre livros, jornais
e velhos documentos a
estudar a história, as tradições e o património de Guimarães. Como resultado dessa sua paixão, daria ao prelo diversos estudos fundamentais para
a interpretação de Guimarães e da sua identidade, de que destaco a
série que iniciou com o ensaios sobre “A lepra em Guimarães” e
que continuou com os seus livros “O Castelo e as Muralhas de
Guimarães”, “O Padrão e a Oliveira”, “Histórias à volta
do Toural”, que tencionava continuar com estudos sobre a Igreja de
S. Sebastião, a Praça de S. Tiago, a Capela da Senhora da Guia e a
fundação da Ordem de S. Francisco de Guimarães.
Enquanto
historiador, Fernando José Teixeira era dos que não aceitavam como
definitivas e inquestionáveis as verdades que a tradição, muitas
vezes postiça e de extracção recente, transmitia. Dou
um exemplo: o nome que, geralmente, é dado ao templete gótico de alpendre aberto da Praça da Oliveira, onde
se abriga um cruzeiro, vulgarmente conhecido como “o Padrão do
Salado”. Seguindo a pista dos textos que se referem àquele
monumento, desde as fontes históricas mais antigas aos estudos mais
recentes, Fernando Teixeira, com argumentos que ainda ninguém
desmentiu, demonstrou que a associação do Padrão à batalha do
Salado é muito recente – surgiu na década de 1920, quando o
monumento já contava quase seis séculos – e
que, a remeter para qualquer batalha, teria
de
ser, necessariamente,
para a de Aljubarrota, que era assinalada pelo altar de Nossa Senhora
da Vitória que o
padrão abrigou até ao princípio do século XX e que sempre ali foi
recordada com o célebre Sermão do Pelote do
dia 14 de Agosto, assinalando a vitória das hostes do Mestre de Avis
em Aljubarrota.
Façamos justiça ao que Fernando José Teixeira nos ensinou. Esqueçamos o
Salado e passemos a chamar o monumento da Praça da Oliveira que é um
dos ícones de Guimarães por um nome que se lhe ajuste e não por
uma alcunha qualquer: o Padrão. O Padrão da Oliveira.
***
Para que melhor se perceba o que acima se escreveu, partilha-se a seguir algumas páginas do livro O Padrão e a Oliveira, de Fernando José Teixeira
O Padrão da Oliveira numa fotografia de 1858. |
O Padrão
Reza
um escrito antigo do Cabido da Colegiada, sem indicação de data,
que a igreja de Nossa Senhora da Oliveira tinha da
parte de fora da porta principal um pátio lageado levantado com
assentos ao redor,
tendo
logo a seguir o
padrão e cruzeiro, que por cima se cobre de abobada e no alto delle
está Nossa Senhora da Oliveira que tambem tem a invocação de
Senhora da Victoria,
e,
mais adiante ainda, uma
antiga Oliveira cercada de socalco de pedra com assentos ao redor
dellas[1].
Salientemos
a existência de assentos distribuídos por toda esta área, o que
vem comprovar o que atrás dissemos ao afirmarmos ser aquele lugar
muito frequentado, o que levou os responsáveis a proporcionar-lhe
algumas
comodidades.
O
cónego Gaspar ESTAÇO,
no século XVII, descrevia o padrão em poucas palavras: uma
Cruz de pedra com a Imagem de Christo crucificado, assentada sobre
uma columna,
e cuberta
de abobeda, que estriba em quatro esteyos
(p.
183).
No inventário que o D. Prior da Colegiada, D. Diogo Lobo da
Silveira, mandou fazer em 8 de Agosto de 1665, deparamos com uma
descrição já mais desenvolvida: “o Padrão
que está contiguo com o adro principal é obra antiga do tempo do
Senhor Rei D. Affonso o 4.º
que santa gloria haja, é a modo de capella e no meio está uma
columna de pedra e no alto tem uma cruz com a imagem de Christo
Senhor Nosso, e na meia laranja da parte de dentro está uma imagem
de N. Sa
da Victoria
ou
da Batalha, ou mais propriamente de N. Sa
da Oliveira, conforme diz Gaspar Estaço no livro que escreveo, o
qual foi conego desta igreja”[2].
Nas
medições da Igreja de Nossa Senhora da Oliveira efectuadas em 12 de
Março de 1682, o padrão é assim referido: “para
deante
(do
pátio da igreja) o
padrão de abobada armado em quatro pilares que o sustentam com
quatro arcos, e em cima está n
’elle a
imagem de Nossa Senhora da Oliveira com algumas pinturas de seus
milagres, e no meio d’elle
um
cruzeiro de pedra muito antigo...”[3]:
o altar do padrão aparece dedicado a Nossa Senhora da Oliveira, no
que concorda com Gaspar ESTAÇO.
Torquato
de AZEVEDO brinda-nos com mais alguns detalhes: “foi
feito este Padrão
[...] em
abobeda de pedra, com quatro arcos fundados em quatro pedestaes, e um
dos arcos corresponde à
porta
da igreja, e neste está um altar de Nossa Senhora com o título da
Victoria
”,
passando depois a falar do cruzeiro propriamente dito. Recoloca, como
vemos, Nossa Senhora da Vitória como titular do altar do padrão.
Diz
a Corografia
Portugueza
que
o Padrão tinha serventia por dentro dele, mas existia antigamente,
de pilar a pilar, uma grade de pau com que se fechava (como se vê,
já vem de trás a existência de uma grade protegendo o monumento).
E provável que esta grade, sendo de pau, tivesse vida efémera, o
que levou o Cabido, como vimos, a substituí-la
por
uma grade de ferro em 1857.
Acrescenta
a Corografia
que
havia ao pé do cruzeiro uma pedra oca, fechada com uma cobertura de
ferro, com uma fenda por onde os devotos e romeiros metiam as suas
esmolas, que deviam ser repartidas a meias pelo D. Prior e pelos
cónegos da Colegiada, nos termos de uma antiga composição. Esse
rendimento era arrendado, como era costume na época, havendo notícia
que, quando D. Afonso Gomes de Lemos, em 1449, tomou posse do
Priorado da Colegiada vimaranense, exigiu o pagamento de mil reais
brancos a Álvaro Rodrigues, a quem tinham sido arrendadas as esmolas
do padrão[4].
E
mais diz a Corografia
que
“rendião
tanto, que sendo a Igreja de S.
Pedro
de Azurey dos Priores in solidum, trocáraõ o rendimento delia,
dando-a ao Cabido pelo rendimento daquela pedra”[5].
Foi mau negócio para os Priores da Colegiada porque a devoção
morreu
com o andar do tempo: diz Torquato de AZEVEDO que, no seu tempo, o
padrão só
servia
para assunto de conversações
(p.
302).
Sobre
o aspecto do padrão, diz a Corografia
Portuguesa
que
era feito de
abobada de pedra em quatro arcos fundados sobre quatro pedestaes, &
são de molduras muito bem lavradas, & cada hum delles no alto
tem huma ponta de diamante, que ficaõ mais altas que o tecto da
abobeda; e no pano da parede de cada hum destes arcos está hum
escudo das Armas do dito Rey”.
CRAESBEECK
(1726) nada acrescentou de relevante, limitando-se
a
remeter o leitor para a Corografia
Portugueza.
José
Augusto VIEIRA, no Minho
Pitoresco
(1886),
escrevia que o padrão “tem
como fundador a el-rei
D.
Afonso IV e é um curioso cruzeiro de granito, coberto por uma
abóbada de pedra, sustentada por quatro elegantes arcos em
ogiva”[6].
A
lenda do Padrão
do Salado
ensaia
aqui os seus primeiros passos.
Alfredo
GUIMARÃES deixou-nos
uma
descrição assaz detalhada do padrão: “obra
ogival que, embora audaz para tal tempo, não pode todavia
classificar-se
fora
do âmbito do grupo dos monumentos iniciais desse estilo. A abóbada
e o enfaixamento das colunas dos
seus quatro pilares são talvez os elementos mais típicos de todo o
conjunto, se bem que
as ogivas dos quatro arcos faciais não alterem em grande parte a
classificação do pequeno
templo histórico, mesmo que ali
se
mantenham formas ornamentais devidas, pela maioria,
à arte românica”[7].
No
seu Guia
de turismo de Guimarães,
diz
ser um padrão novigótico,
que comemora, pelas suas quatro potentes arcarias ogivadas, do estilo
gótico-primário, a Batalha do Salado[8].
A
lenda da batalha
do Salado
avançava
já de vento em popa...
Eduardo
d’ALMEIDA, em 1923, foi mais longe ao dizer que “o nosso
Afonso IV passa
por ter visitado a Senhora da Oliveira, logo depois do Salado,
mandando construir
em
memória deste facto, o baldaquino que está junto do templo da
Virgem, e dentro do qual existe uma notável cruz normanda, que é um
modelo da melhor arquitectura votiva do século XIV”[9].
Não
bastava que o padrão fosse um memorial da batalha de Salado,
sugere-se que ele tenha sido erguido por mandado do próprio rei D.
Afonso IV: como bem diz o povo “quem
conta um conto acrescenta um ponto”...
Já
nos nossos dias, o Eng.º
Gomes ALVES, em artigo publicado em 12 de Outubro de 1979 no jornal
“Notícias
de Guimarães”,
fala
também do conhecido
Padrão do Salado, marco comemorativo da batalha do mesmo nome,
que
descreve deste modo: “é fundamentalmente
uma abóbada de pedra, apoiada em quatro arcos em ogiva que por sua
vez repousam em quatro colunas ou pedestais, lavrados e moldurados ao
gosto romanizante, onde se destacam, preciosamente, lavrados e
historiados capitéis. Sobre estes arcos ficam aqueles alçados
triangulares, em forme de cunha ou agulha, que dão ao monumento o
aspecto peculiar e interessante que realmente tem".
E
perguntava: “Teria
ou não este Padrão sido primitivamente coberto a telha? Seria ou
não de admitir uma cobertura em oito águas?... ”[10].
Contudo,
noutro artigo do mesmo jornal, em 23 de Novembro do mesmo ano, dá-lhe
o
nome de Padrão
da Vitória.
Mera
incoerência ou reconhecimento do erro?...
As
legendas das fotografias do livro “Guimarães
do passado e do presente”
(1985)
consagram também essa denominação, que consideramos errónea[11].
Maria da Conceição Falcão FERREIRA (1989) aceita sem reparo essa
designação, subscrevendo com Eduardo d’ALMEIDA que o padrão
teria sido feito por
ordem de D. Afonso IV, em agradecimento da vitória do Salado[12];
Maria
Adelaide Pereira de MORAES (1998) não se afasta muito desta
linha,[13]
e uma placa de bronze colocada recentemente junto ao monumento para
informação dos turistas, dá-lhe,
ela
também, o nome de Padrão
do Salado.
Não
há, que se saiba, qualquer documento antigo que justifique esse
nome: apenas a proximidade temporal o liga à batalha do Salado: 1340
- data da batalha do Salado; 1342 - data
do
levantamento do padrão.
[...]
Fernando José Teixeira, O padrão e a Oliveira, Guimarães, 2007, pp. 15-19
NOTAS:
[1].
FARIA, João Lopes de - Velharias
da Colegiada,
vol.
V,
fl. 162
[2].
Idem,
fl.
175
[3].
Idem,
vol.Vl.fls. 137ve138
[4].
MARQUES,
José - ob.
cit.,
p.
244
[5].
COSTA,
António Carvalho da - ob.
cit.,
p.
45.
A pedra das esmolas ainda existia quando a Corografia
foi redigida.
[6].
VIEIRA,
José Augusto – O
Minho
Pitoresco,
1.1, (Lisboa, 1886), pp.
585-611.
[7].
Guimarães:
publicação comemorativa...,
p.
72
[8].
GUIMARÃES,
Alfredo – Guimarães:
guia de turismo,
2.ª
ed., p.
107
[9].
ALMEIDA,
Eduardo d’ – ob.cit.
[Romagem
dos séculos –
I],
p.
20,
A páginas 152, volta a referir-se
ao
padrão, dizendo-o
edificado
por D. Afonso IV.
[10].
ALVES, José Maria Gomes – Património
artístico e cultural de Guimarães,
Lisboa, 1981, p. 121.
[11].
“Guimarães
do passado e do presente”,
Guimarães, 1885, pp. 215 e 216.
[12].
FERREIRA, Maria da Conceição Falcão – Uma
rua de elite na Guimarães medieval: 1376-1520,
Guimarães, 1989, p. 20.
[13].
MORAES, Maria Adelaide Pereira de – Ao
redor de Nossa Senhora da Oliveira,
1998, p. 24. Publicações ainda mais recentes mantêm a designação
de “Padrão do Salado”. Nã há dúvida que entre nós as lendas
pegam de estaca!
0 Comentários