O relógio camarário (3)



[continua daqui]
Após a implantação da República, o Estado português aderiu à Convenção de Washington de 1884, que estabelecia os fusos horários. A hora oficial portuguesa passou a reger-se pelo fuso das 00:00, a partir do dia 1 de Janeiro de 1912. Esta inovação obrigou a que, ao chegar à meia-noite do último dia do ano de 1911, os relógios tivessem sido adiantados aproximadamente 37 minutos (36 minutos e 44,68 segundos), operação que se fez sem problemas de maior.
Mais complicada seria a aplicação da outra alteração introduzida por aquela reforma, a das 24 horas. As horas dia, que até aí se repartiam por dois ciclos de 12 horas, o primeiro entre a meia-noite e o meio-dia, o outro entre o meio-dia e a meia-noite, passaram a ser contadas de 0 a 24, o que iria implicar a alteração física e funcional dos relógios. Os mostradores passariam ter inscritas as 24 horas oficiais e, à meia-noite, em vez das 12 badaladas, passariam a soar 24. Esta última mudança é que se revelou de execução mais complicada, dando origem a muitas histórias que rapidamente entraram no anedotário popular.
relógio da Oliveira demorou a adaptar-se à nova hora.
No dia 13 de Dezembro de 1911, a Câmara decidiu mandar reformar o mostrador do relógio municipal colocado na torre da Oliveira, em harmonia com o regulamento da nova hora oficial (na sessão seguinte, realizada no dia 27, foi decidido colocar uma lâmpada eléctrica no mostrador). Porém, apesar dos esforços do relojoeiro encarregado da sua manutenção, João das Doutrinas, o relógio teimava em desobedecer à lei, não dando as 24 horas. E ficaria algum tempo sem funcionar, até que, no dia 4 de Fevereiro de 1912, os vimaranenses o ouviram bater, pela primeira vez, as duas dúzias de badaladas. Algo incrédulo, povo escutou e foi contando os toques do sino. E não faltou quem dissesse que era o relojoeiro, que, alcandorado na torre, pela sua própria mão estava martelando as horas, como contou o jornal republicano Alvorada, na sua edição de 8 de Fevereiro de 1912.
A introdução do novo sistema de contar as horas animou e perturbou o quotidiano das gentes, como lembraria, umas décadas mais tarde, numa crónica deliciosa, o Coronel António Quadros Flores:
Foi uma confusão dos diabos e durante um certo período ninguém se entendia com a “hora nova”; as 14 horas eram as 4; às 7 da tarde, chamavam 17, dando em resultado algumas perdas de comboios ou chegarem à estação do C. F. com duas horas de avanço, só por não reflectirem em que tinham de acrescentar ou diminuir 12 horas às da tarde, e isto para o caminho de ferro, que então era o único meio de transporte acelerado e com horário já organizado pela nova designação.
Se calhar por ser do tempo da monarquia, o velho relógio nunca foi muito certo a bater as 24 horas, com o que se comprazia o muito monárquico jornal Ecos de Guimarães, na sua edição de 5 de Abril de 1914:
O relógio, com a introdução das progressivas e republicanas 24 horas, tanto deu de martelo que cansou, e o povo é que aguenta a patetice dos precoces edis que a parvalheira levou até à Câmara.
Por aquela altura, os responsáveis municipais já tinham percebido que o relógio da torre não tinha emenda e que a solução passaria de aquisição de um maquinismo novo. Assim o propôs à vereação Mariano Felgueiras,  numa reunião realizada no dia 2 de Janeiro de 1914. O novo relógio chegou a Guimarães em meados de Maio daquele ano. E, afinal, os republicanos tiveram que se conformar: a nova máquina não iria dar as 24 horas, por falta de corda. Mas estava apta a dar os quartos e as meias horas. Este relógio funcionou até finais da década de 1980. O seu mostrador de 24 horas, embora com os números já um tanto apagados, ainda é o que está na torre da Colegiada.

Comentar

0 Comentários