Ronda da Lapinha (fotografia da Arquidiocese de Braga). |
A
sua imagem, que dizem ser
irmã
da da Senhora da Oliveira, apareceu misteriosamente numa lapa
(cavidade aberta num rochedo) e o povo chamou-a de Senhora da
Lapinha. Fizeram-lhe uma capela no lugar da sua aparição porque,
diz a lenda, se recusava a ir para sítio menos
inóspito.
Defende as culturas contra a bicha
(lagarta)
e é a protagonista da celebrada Ronda
da Lapinha, em
que, num dia de meados de Junho, levada em andor enfeitado de cachos
de uvas e de pés de milho, vai em peregrinação desde a sua capela,
em S. Lourenço de Calvos, até à igreja da Oliveira, voltando por
caminho diferente, recolhendo-se ao seu altar, quando a noite já é
cerrada. João Gomes de Oliveira Guimarães, o Abade de Tagilde,
contou a sua história e registou alguns dos versos das “ternas
loas” que os romeiros entoam enquanto vencem as agruras do caminho.
Ronda da Lapinha de 1899. |
Senhora da Lapinha (Calvos)
Na
freguesia de S. Lourenço de Calvos, na encosta superior à igreja
paroquial, levanta-se em terreno da serra de Santa Catarina desde
tempos remotos, que não podem precisar-se, uma capela sob a
invocação da Senhora da Lapinha, cuja imagem é uma das mais
milagrosas e queridas do concelho de Guimarães e terras
circunvizinhas.
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livro mais antigo que podemos encontrar no arquivo da irmandade é o
inventário
feito em 1705, muito antes porém já esta capela existia e a Senhora
era objecto de muita devoção.
Em
1663 já o célebre
clamor, ou ronda, de que adiante falamos, ia a Guimarães, como nos
informa uma deliberação do cabido da Colegiada. A própria lenda,
que lhe anda ligada, demonstra a antiguidade do culto, que se lhe
presta.
Provém
a denominação de ter sido encontrada a primeira imagem da Senhora
numa
lapa, ou penedo, que servia, até à reconstrução da capela, que há
poucos anos começou e ainda não está completa, de fundo à
capela-mor; afirma-o a tradição popular, acrescentando o bom povo,
na sua ingenuidade, que a Senhora manifestou miraculosamente decidida
vontade de ser venerada no lugar onde apareceu, porquanto, levada
para outro, desaparecia misteriosamente pela calada da noite e
voltava ao primeiro; facto que, repetido por diversas vezes, produziu
a erecção da capela em honra da Senhora da Lapinha, irmã da
Senhora da Oliveira, venerada na igreja da
Colegiada de Guimarães, que anualmente lhe recebe a visita.
Nossa Senhora da Lapinha (Calvos) |
A
festa principal da titular celebra-se com toda a pompa na
segunda-feira do Espírito Santa e neste dia se determina aquele em
que a Senhora vai processionalmente a Guimarães, em regra no domingo
imediata a 13 de Junho. Outrora era este dia o fixado, como se lê
nos livros da paróquia.
Esta
procissão, ou clamor, é uma das solenidades mais concorridas, mais
singular e característica do concelho de Guimarães e terras
vizinhas à Lapinha. Em satisfação de antigo voto a Senhora
carregada de adornos, cordões e jóias, ostenta-se donairosa no seu
trono, levantado em vistoso andor, que com a refulgência de seus
ornatos fere a vista e com a altura da sua cúpula parece caminhar
arrogante para as nuvens, o qual é conduzido aos ombros de
espadaúdos moços, que à porta disputam a honra de sustentar os
banzos da charola. Precedida de inúmeras cruzes e, guiões, que das
freguesias limítrofes e de outras mais distanciadas vêm formar-lhe
cortejo, e seguida de enorme multidão de devotos, grande parte
descalços, a Senhora da Lapinha, anunciada pelo barulho atroador de
numerosos tambores, que abrem a marcha, faz anualmente a sua entrada
em Guimarães e, após alguma demora na igreja de Nossa Senhora da
Oliveira, regressa, por diverso caminho ao já percorrido, à sua
capela, entoando o povo durante o percurso de 15 quilómetros, pelo
menos, a ladainha dos Santos.
E
desde este dia, afirma convicto o nosso povo, o
bicho não mais bole no milhão.
É
administradora desta capela uma irmandade, que data de antigos tempos
e se governa por estatutos aprovados a 20 de Junho de 1880 pelo
governador civil.
Celebra-se
aqui missa em todos os domingos e dias santos conforme a instituição
de um benemérito filho desta freguesia Manuel José Mendes Brandão,
filho
de André Fernandes e Isabel Mendes, do lugar da Venda, que,
adquirindo quantiosos haveres no Rio de Janeiro, não esqueceu a sua
terra natal, dotando-a com avultados benefícios e entre eles a missa
nesta capela, que antes foi diária, relembrada na seguinte
inscrição, que está gravada em uma lápide
posta no interior da capela: “Neste altar-mor se diz missa todos os
dias enquanto
o mundo durar pelas almas de Manuel José Mendes Brandão, cavaleiro
professo na Ordem de Cristo, natural desta freguesia, e de seus
irmãos a qual obrigação de assim as mandar dizer tem a Ordem
terceira de S. Francisco da cidade do Porto, que a isso se obrigou
por escritura de 3 de Outubro de 1792 feita na nota do tabelião
Manuel da Cunha Vale da dita cidade celebrada com o dito instituidor
Manuel José Mendes Brandão.”
Este
mesmo benfeitor, em seu testamento, legou o capital necessário para
que dia e noite ardesse uma lâmpada ante a imagem da Senhora. Em
1818, recebeu-se este legado na importância de 533$180 réis, como
se vê no respectivo livro de contas da irmandade. Este legado não é
actualmente satisfeito.
A
musa popular afina as cordas da sua lira e dela tira ternas loas
que endereça à Virgem da Lapinha. Não resistimos à tentação de
oferecer ao leitor algumas destas composições poéticas da musa
ingénua do campo.
A
Senhora da Lapinha
C’o
Menino no braço,
Nós
a vamos adorar
Com
todo o desembaraço.
O
Senhora da Lapinha!
Aqui
tens o meu serão,(1)
Já
que por milagre saraste
O
meu ditoso irmão.
O
Senhora da Lapinha!
Vinde
abaixo, dai-me a mão,
Eu
sou brandinha do peito,
Abafo
do coração.(2)
À
Senhora da Lapinha
No
meio daquela serra,
Hei-de-lhe
dar uma prenda,
Se
voltar a esta terra.(3)
A
Senhora da Lapinha
Tem
um manto que reluz,
Que
lhe deram os anjinhos
No
descimento da cruz.
A
Senhora da Lapinha
Tem
um manto coisa linda,
Que
lhe deram os anjinhos
Na
cidade de Coimbra.
A
Senhora da Lapinha
Tem
um manto coisa boa,
Que
lhe deram os anjinhos
Na
cidade de Lisboa.
A
Senhora da Lapinha
Tem
um mantinho dourado,
Que
lhe deram os anjinhos
Que
ficaram a seu lado.
A
Senhora da Lapinha
Tem
uma meada d’ouro,
Lavada
na Fonte Santa,
Corada
no Miradouro.(4)
A
Senhora da Lapinha
Anda
no monte sem roca,
P’ra
acabar uma meada
Falta-lhe
uma massaroca.
A
Senhora da Lapinha
Anda
no seu pinheiral,
A
colher as pinhas verdes
Para
a noite de Natal.
A
Senhora da Lapinha
Bota
fitas a voar,
Bota
uma, bota duas,
Todas
vão cair ao mar.(5)
A
Senhora da Lapinha,
Ela
é muito pequenina;
Da
idade de dez a imos
Morreu
pela fé divina.
Senhora
da Lapinha
E
madrinha de Maria ;
Eu
também sou afilhada
Da
Senhora d'Abadia.
Ó
Senhora da Lapinha!
D'arredor
de vós andei,
Tantos
anjos m’acompanhem
Como
de voltas eu dei,
Ó
Senhora da Lapinha!
De
lá vimos a cantar;
Lá
nos ficou uma rosa
No
meio daquele altar.
(1)
Serão. Assim se denomina na ribeira do Vizela uma romagem
constituída por crianças
do sexo feminino, em numero indeterminado, que, organizada, em
cumprimento de promessa, por algum devoto, se dirige a alguma igreja
ou capela, cantando, pelo caminho e ao redor destas, a Ave-Maria e
versos em louvor do santo que se intenta venerar.
(2) Explica-se, talvez, este verso por estar a capela situada na encosta
do monte e ser trabalhosa, quase por todos os lados, a ascensão para
o local, invocando-se por isso o auxílio
da Virgem.
(3)
Consigna o voto
de algum emigrante para o Brasil,
(4)
Aldeias nos subúrbios de Guimarães. A primeira afamada pela sua
fonte, cuja água é considerada milagrosa. Junto dela foi a primeira
residência de S. Gualter.
(5)
Talvez referência à protecção, que a Virgem dispensa aos nautas.
Ave, Maris stella!
J. G. de Oliveira Guimarães (Abade de Tagilde), Guimarães e Santa Maria, Porto, 1904, pp. 82-86.
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