Padrão do
Salado. Porquê?
Para se
perceber o porquê, era necessário apurar o quando, ou melhor, o desde
quando é que o singular monumento da Praça maior de Guimarães é chamado de
Padrão do Salado. Estava o cruzeiro alpendrado a completar quase seis séculos
desde que fora erguido, quando o vemos designado pela primeira vez como “padrão comemorativo
da Batalha do Salado”, num apontamento publicado no jornal Notícias de Guimarães
de 13 de Outubro de 1940 em que se arrolavam as deliberações da sessão da Câmara
Municipal realizada no dia 9 daquele mês, entre as quais se contava a decisão de
“mandar que pela repartição de engenharia se proceda à construção de uma estada
para limpeza do frontão da Colegiada e do padrão comemorativo da Batalha do
Salado”. A partir da data desta informação, não foi difícil encontrar de onde veio o
baptismo tardio do monumento.
Por aqueles
dias, estavam em curso as Comemorações Centenárias do Mundo Português, com
que o Estado Novo assinalou o 8.º centenário da fundação de Portugal (1140) e os
500 anos da restauração da independência (1640), com um extenso programa
nacional de que Guimarães seria, naturalmente, um dos palcos principais. Entre
as iniciativas locais vimaranenses, inclui-se a edição, aprovada pela Câmara na
sua última reunião de 1939, de duas obras em livro “a publicar por ocasião das
Festas Centenárias, uma monografia, subordinada ao título “Guimarães — História
e Arte”, e um guia de turismo do concelho de Guimarães”, de cuja execução seriam
encarregadas, respetivamente, a Litografia Nacional do Porto e a Tipografia Porto-Médico.
Uma dessas obras, o livro Guimarães — Guia de Turismo, de Alfredo Guimarães, director
do Museu de Alberto Sampaio, esteve patente ao público, pela primeira vez, no
dia 28 de Maio de 1940, numa montra da Porta da Vila. É no terceiro capítulo
desta publicação cuidada que encontrámos o desde quando que
procurávamos:
O padrão novi-gótico que toma a dianteira da igreja, comemora, pelas suas quatro potentes ogivas, a Batalha do Salado, dada em 1340, no reinado de D. Afonso IV — “o último incidente do movimento hispânico da Reconquista em que Portugal colaborou” (ALFREDO PIMENTA).
Dentro, a obra do cruzeiro é de origem normanda e executada, em calcário doirado e policromado, no ano de 1342, sendo oferta de um negociante vimaranense, residente em Lisboa, de nome Pero Esteves. Tem Cristo Crucificado e a Virgem, sob baldaquinos, nas duas faces, e ainda, em torno da base da cruz, as imagens de S. Vicente, o apóstolo S. Filipe, S. Torcato e o Anjo da Guarda. Desapareceram as quatro outras imagens do segundo plano, cujos engastes ainda se vêem cravados no fuste.
Das muitas
notícias, livros e documentos com referências ao Padrão que consultámos podemos
concluir que a primeira vez em que o seu levantamento foi associado à Batalha
do Salado data de 1940 e saiu da pena criativa de Alfredo Guimarães.
Temos o
quando, 1940, e o quem, Alfredo Guimarães. Falta saber o porquê,
ou seja, em que é que Alfredo Guimarães se baseou para afirmar que o padrão
comemora a Batalha do Salado. O primeiro director do museu de Alberto Sampaio afirma,
correctamente, à luz do conhecimento histórico, que o monumento foi “oferta de
um negociante vimaranense, residente em Lisboa, de nome Pero Esteves”. É verdade
que cita Alfredo Pimenta, para classificar a Batalha do Salado como “o último
incidente do movimento hispânico da Reconquista em que Portugal colaborou”, mas
não invoca para validar a consagração do Padrão como obra comemorativa daquele
recontro entre mouros e cristãos. Em 1953, na segunda edição da obra, fará
referência à ligação do alpendre gótico a uma outra batalha, a de Aljubarrota, de
onde lhe veio o ser conhecido por Padrão de Nossa Senhora da Vitória ou, mais simplesmente,
Padrão da Vitória:
Junto deste Monumento manda a Câmara Municipal de Guimarães, em 14 de Agosto de cada ano, celebrar uma Missa Solene, comemorando a Batalha de Aljubarrota.
Se foi Alfredo
Guimarães quem deu ao monumento mais singular de Guimarães o nome de Padrão do
Salado, como parece demonstrado, não cuidou de indicar a fundamentação, a fonte
ou o documento em que se possa ter baseado para estabelecer a associação entre
o Padrão e o Salado.
De onde
podemos concluir que não existe qualquer alicerce para tal associação e que não
faz qualquer sentido, seja à luz da história, seja à luz da tradição, para se
chamar Padrão do Salado ao cruzeiro e ao alpendre gótico que o mercador Pero
Esteves, “por vontade de Deus”, encarregou o seu irmão Gonçalo de ir buscar à
Normandia para oferecer à terra que o viu nascer e que está na origem do culto à
Senhora da Oliveira e fez da oliveira um dos símbolos de Guimarães.
À falta de melhor explicação, direi que a associação entre o Padrão e o Salado feita por Alfredo Guimarães é meramente cronológica: o monumento é do tempo do reinado de D. Afonso IV, e quase contemporâneo da Batalha do Salado, em que aquele rei participou. Vários autores fizeram essa contextualização temporal, mas nenhum, antes do autor do Guia de Turismo tinha escrito que o monumento fora mandado erigir por D. Afonso IV (o que, em abono da verdade, Alfredo Guimarães não diz, mas que outros, depois dele, dirão) para comemorar a Batalha do Salado. Esse é o caso do padre Aloísio Gonçalves, no seu ensaio biográfico sobre S. Gualter, publicado em 1925 na Revista de Guimarães:
Na iconografia gualteriana avulta singularmente, tanto pela antiguidade, como pela grande importância documental, a efígie do santo que no velho cruzeiro normando do Padrão da Vitória veneramos.
Há quinhentos e trinta e seis anos que esse venerando monumento vem atestando a devoção do povo vimaranense pelo discípulo de S. Francisco, que veio na pátria abençoada de D. Afonso Henriques fazer sua habitação terrena e dormira sono derradeiro. Não foi, é claro, expressa e determinantemente levantado para honrar a memória de S. Gualter. Ridículo, seria tal coisa afirmar. A intenção do munificente fundador foi reunir numa consagração perene os vultos gloriosos daqueles bem-aventurados que a sua nobre terra natal aclamava padroeiros, ajuntando-lhe outros santos da sua particular devoção.
É o padrão uma singela construção ogival, coeva do rude campeador do Salado. É contudo documento precioso da arte nacional — na parte que a ela diz respeito, — e por isso classificado entre eles como de segunda ordem.
Compõe-se o dito alpendre de quatro arcos, duvidosamente lançados, poisando sobre outros tantos feixes de colunas suportadas por fortes cunhais, sustentando uma ligeira abóbada. No fecho de cada arco está embutido o escudo das armas portuguesas, tal como se usavam no tempo de D. Afonso IV; escudo que também se vê na face nordeste do pedestal da cruz.
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