Recordo com frequência uma folha manuscrita na montra de uma
livraria que nasceu como acto de resistência e de que hoje apenas resta a
memória, a Raul Brandão, ali a meio da rua de Santo António, em Guimarães. Era
uma página de Levantado do Chão, o livro que revelou José Saramago como o
espantoso escritor que um dia haveria de se apresentar na Casa dos Concertos de
Estocolmo para receber o Nobel da literatura. Recordo uma folha de texto
limpo e caligrafia regular, mas bem poderia ser uma página dactilografada e
povoada de emendas caóticas, porque aprendi a não me fiar da memória, mesmo que
seja a minha. Estávamos em 1980, quando já se saravam as feridas abertas durante
processo de transição para a democracia e o livro que Saramago levantou do
chão para contar o Alentejo acabava de ser lançado. Tendo a acreditar que terá
sido por aqueles dias que o escritor, na pele do viajante que percorre o país
para depois o contar no livro Viagem a Portugal, passou por Guimarães.
A Viagem a Portugal tem algo de incomum na obra de Saramago: uma apresentação (que, aliás, começa como um discurso contra todas a as apresentações e todos os prefácios: “mal vai à obra se lhe requerem prefácio que a explique, mal vai ao prefácio se presume de tanto”), onde o escritor previne o leitor que
Esta Viagem a Portugal é uma história. História de um viajante no interior da viagem que fez, história de uma viagem que em si transportou um viajante, história de viagem e viajante reunidos em uma procurada fusão daquele que vê e daquilo que é visto, encontro nem sempre pacífico de subjectividades e objectividades.
O que nos conta o viajante da sua estadia em Guimarães não é, não poderia ser, Guimarães,
mas o olhar do viajante sobre aquilo que encontra. Dormiu numa água-furtada com vista
para a Praça do Toural, de onde partiu para terras de Basto e regressou ainda
a tempo de visitar a igreja de S. Francisco. No segundo dia, visitou o castelo,
sem precisar de subir ao caminho de ronda para ver mais paisagem, nem à alta
torre para ver mais paisagem ainda.
No meio destas pedras, quais são as mais carregadas de sentido? Muitas foram aqui postas há pouco mais de quarenta anos, outras são do tempo de D. Fernando, e do que foi terra e madeira mandada armar pela condessa Mumadona nada resta, salvo talvez esta poeira molhada que se pega aos dedos do viajante quando sacode a bainha das calças.
Desiludido com o castelo, passou à porta fechada da igreja de S.
Miguel e visitou o Paço dos Duques, onde pressentiu o mesmo gosto de
medievalização que arcaizou os escultores oficiais e oficiosos entre os anos 40
e 60, que emanava do ar pintado de fresco que tudo tem, mesmo o que é
indesmentivelmente antigo, como estas tapeçarias de Gobelins e Pastrana (aqui, ou se enganou o viajante ou o enganou quem lhe serviu de guia, pelo menos no que
toca à antiguidade das tapeçarias de Pastrana do Paço dos Duques que, sem
deixarem de ser magníficas, são cópias do século XX de tapetes de finais do século XV).
Descendo a colina, Saramago visitou os museus, começando pelo da
Sociedade Martins Sarmento, onde
Saborosas são as estátuas dos guerreiros lusitanos, o avantajado colosso de Pedralva, o berrão de granito, mano da porca de Murça e doutras porcas transmontanas, e enfim a porta do forno crematório de Briteiros, a bem nomeada Pedra Formosa, com os seus ornatos geométricos de laçaria e entrançados.
(Saramago,
que não foi acometido pela dúvida de Miguel Torga, que ali mesmo se interrogou
sobre a verdade do Colosso de Pedralva, não sabia que, por aqueles dias, já
estava deslindado o mistério da Pedra Formosa, que continuava bem nomeada, embora
não fosse a porta de um forno crematório, mas o frontispício de um balneário.)
A seguir, o viajante encantou-se com a colecção de arte sacra do Museu
de Alberto Sampaio, um dos mais belos museus que conhece.
É ponto assente para o viajante que o Museu de Alberto Sampaio contém uma das mais preciosas colecções de imaginária sacra existentes em Portugal, não tanto pela abundância, mas pelo altíssimo nível estético da grande maioria das peças, algumas verdadeiras obras-primas.
E, depois de passear pelas ruas velhas, o viajante desceu ao Toural. Todos cometemos erros, confessou.
Há ali uma igreja, cujo nome o viajante prefere que fique no esquecimento porque é um atentado ao gosto mais elementar e ao respeito que uma religião deve merecer: esta é a atmosfera beata por excelência, o oratório da tia Patrocínio ou da madre Paula, a deliquescência de confessionário.
E foi-se embora. Uns dias mais tarde, ainda visitaria a
Citânia de Briteiros.
É verdade que em 1980, quando ainda se ensaiavam os
primeiros passos do processo de requalificação que justificaria, duas décadas
mais tarde, o reconhecimento pela UNESCO do Centro Histórico como Património
Mundial, Guimarães era uma cidade muito
diferente daquilo que é hoje. Mas já estava tudo lá: as ruas, as praças, as gentes,
o modo de vida. A Vila de Raul Brandão. Nada disso o viajante viu (ou, se viu, não contou). Nem poderia
ver em tempo tão escasso. Não foi em vão que advertiu, na apresentação, que nenhuma
viagem é definitiva.
E, porque nenhuma viagem é definitiva, nesta Primavera o repórter é o viajante atento e perguntador que segue o percurso de José Saramago na sua Viagem a Portugal, sem se limitar a perseguir os caminhos do escritor. Esta é uma outra viagem, feita quando se assinalam os 100 anos do nascimento de José Saramago, que percorre o mesmo roteiro, mas com outros passos, agora contados pela voz única de Fernando Alves, que nos conduz pelos pelas estradas deste país que, sendo assim pequeno, é, ao mesmo tempo, tão diverso e singular.
Viagem a Portugal, com Fernando Alves, domingos às 11h00,
terça-feira depois das 23h00 e sempre em tsf.pt. Passou por Guimarães no episódio que se escutou pela primeira vez no dia 27 de Março. Vale a pena ouvir.
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