A Festa do Pelote de 1953. O Livro de Ouro do Centenário da Cidade de Guimarães, 1954. A missa foi celebrada no altar de prata oferecido pro D. João I à Senhora da Oliveira, com o pelote exposto na coluna da esquerda do padrão (atrás da cadeira) [com o apoio de Nuno Saavedra] |
Li
com atenção e curiosidade a notícia de que este ano a Câmara
Municipal de Guimarães e a Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira
iriam retomar a celebração da Missa do Pelote. Vi algumas
pessoas torcerem o nariz à iniciativa, com
o argumento de que o
processo de municipalização de quase tudo estava a chegar às
celebrações religiosas. Permitam-me discordar. A
Festa do Pelote (é esta a designação da celebração, porque era
muito mais do que uma missa, como já veremos), tendo uma forte componente religiosa, é, acima de tudo, uma manifestação de
natureza política que assinala a manutenção da independência de
Portugal, após
vitória do Mestre de Avis na Batalha de Aljubarrota, em
que ficou decidida a crise dinástica de 1383-1385.
E tanto assim é que, sempre
que a
Câmara não tinha dinheiro ou
quando
não dava ordem para se fazer a
festa, a festa não se fazia, nem sequer na
sua parte exclusivamente
religiosa. Assim
aconteceu, por exemplo, em 1678, como se lê numa efeméride que
João Lopes de Faria
registou para
14 de Agosto daquele
ano:
Não
houve festa do Pelote. Estando tudo pronto para a “festa do
Pelote”, e reunidos no adro da Colegiada, em comunidade, os frades
de S. Domingos e S. Francisco e a Câmara, presidida pelo juiz de
fora, para a procissão, e sendo já dez para as onze horas, o dito
juiz mandou o tabelião António Nunes perguntar ao tesoureiro-mor,
Nicolau Dias de Matos, presidente do Cabido, se havia procissão ao
que ele respondeu não saber se a havia, porquanto a Câmara lhe não
tinha dado parte, nem ao Cabido, e como os cónegos principiaram a
sair da igreja, também as ditas comunidades e o povo se foram
embora.
Num texto do padre Torcato Peixoto de Azevedo que já
aqui publicámos, temos
uma descrição da festa, tal como se celebrava no século XVII. A
Festa
do Pelote tinha
lugar pela manhã de cada dia 14 de Agosto. A
lança que o rei utilizou na Batalha de Aljubarrota era arvorada
junto ao Padrão da Praça da Oliveira, com o pelote nela pendurado.
Segundo
alguns relatos que ficaram documentados, eram expostos no mesmo dia
os
outros
objectos do espólio oferecido à Senhora da Oliveira após a Batalha
de Aljubarrota, que se guardavam no Tesouro da Colegiada. Havia
uma procissão solene, com as suas músicas e danças (para se
perceber melhor o que seriam
estas danças, que têm a mesma matriz das Danças de S. Nicolau, sugiro
a leitura deste artigo sobre as folias dos estudantes de Guimarães). O cortejo, com
a imagem da Senhora da Oliveira debaixo do pálio,
saía da Colegiada, percorria diversas ruas da vila, depois cidade,
terminando
junto do Padrão, onde estava levantado um altar que servia na
celebração de uma missa campal, que incluía um sermão,
de que ficou na memória o que proferiu Frei
Luís da Natividade em 1638, cujo título completo é, ele
próprio, uma descrição do programa da Festa do Pelote:
RETRATO DE PORTUGAL CASTELHANO. DECLAMAÇÃO ECLESIÁSTICA E ENCÓMIO ÚLTIMO SOBRE O PELOTE DE ELREI Dom João de boa memória, primeiro do nome; o qual atravessado em a própria lança do mesmo Rei, se põe à vista do povo na Vila de Guimarães, todos os anos em catorze de Agosto, dia do nascimento, morte, & vitória de Aljubarrota, pelo mesmo Rei, enquanto se faz a procissão, prega, diz a Missa: ao que tudo assiste o Cabido, Câmara & povo. Foi declamada no Ano de 638.
No
final, dentro da igreja da Colegiada, junto a um túmulo de madeira
preparado para o efeito, cantava-se um responso por alma de D. João
I e dos portugueses que tombaram na Batalha de Aljubarrota, a que a Câmara também assistia, acto que se manteve, mesmo
depois de cair o costume de se erigir o túmulo de madeira dentro
do templo.
Também
temos notícia, de meados do século XIX, de que neste dia a Câmara
mandava içar a bandeira no Castelo, à imagem do que acontecia nos
dias das festas nacionais. No mais, o programa ia-se mantendo, como se
percebe pela notícia da Festa do Pelote de 1858, publicado no jornal
A Tesoura de Guimarães de 17 de Agosto:
O Pelote. — Este
ano festejou a ilustríssima câmara o aniversário da batalha de
Aljubarrota, havendo missa e sermão dentro do monumento, levantado
na praça da Senhora da Oliveira, para perpetuar a memória e
recordação de tamanha vitória. O pelote esteve patente
assim como alguns dos despojos que o grande Rei D. João 1.º veio
oferecer à sua Protectora, e nossa Padroeira a Senhora da Oliveira.
O ilustrado Orador o snr. Faria Sampaio, sem excitar as animosidades
que estavam no gosto do tempo antigo, não deixou de mostrar quanto o
valor dos portugueses é prodigioso e sobrenatural, quando empenhado
por uma causa justa, ou em apoio da sua independência, e liberdade.
Em
Setembro de 1910, António Guimarães (provavelmente Alfredo
Guimarães) descreveu na revista Serões [N.º
63, Set. 1910, pp. 212-216] a
Festa do Pelote que arquivara das suas memórias de infância:
Quantas vezes, ao
alvorecer do dia 14 de Agosto, mal luzia a madrugada, descia alegre
até ao seu cruzeiro bizantino a gozar, na simplicidade dos meus
poucos anos, a cerimónia que há seis séculos comemorava o
acontecimento notável! E era sempre a mesma missa solene, na
presença da câmara e dos cónegos o mesmo sermão ao ar livre, em
que qualquer clérigo, menos lido em profundezas históricas, entoava
erros palmares em altíssono berreiro patriótico; a mesma pasmaceira
popular, os mesmos comentários pitorescos, em frente do pelote; a
mesma cerimónia fúnebre, ainda, pelos que morreram na batalha!
A Festa do Pelote de 1953. O Livro de Ouro do Centenário da Cidade de Guimarães, 1954. Em formação durante a missa, tropas do RI8 de Braga.[com o apoio de Nuno Saavedra] |
Com raras
intermitências, a Festa do Pelote aconteceu todos os anos até 1978.
A missa e o sermão tinham lugar ao ar livre, junto ao Padrão onde
esteve, até 1913, um
altar com a imagem de Nossa da Senhora da Vitória. Dentro da
igreja da Colegiada, apenas se cantavam os responsos pela alma do
Mestre de Avis. Em
1931, a missa foi celebrada na igreja, por causa da chuva que então
caía sobre Guimarães. Em 1973, voltaria ao espaço interior, para
assinalar a reabertura da igreja da Colegiada, na sequência das obras
de restauro, que então ainda decorriam. A última vez que se
celebrou a Festa do Pelote foi há precisamente 30 anos, na manhã de
14 de Agosto de 1978 e, tal como no ressurgimento de 2018, resumiu-se
a uma missa mandada celebrar pela Câmara Municipal de Guimarães na igreja da Colegiada.
Notícia da Festa do Pelote de 1978, no jornal O Comércio de Guimarães. |
Faz bem a Câmara,
com a colaboração da Colegiada de Guimarães, em recuperar e
renovar a tradição da Festa do Pelote. E não será necessário dar
voltas à imaginação para lhe fixar o programa. É mais do que uma missa e já está fixado há
séculos.
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