A Batalha de Aljubarrota e a devoção do Mestre de Avis à Senhora da Oliveira

A Batalha de Aljubarrota, por Jean d'Wavrin (Chronique d'Angleterre - British Museum)


Passam hoje 633 anos sobre a Batalha de Aljubarrota, embate que marca a vitória definitiva do Mestre de Avis sobre as pretensões de D. João I, rei de Castela, ao trono de Portugal. Na descrição da batalha, escrita pelos cronistas e perpetuada pela tradição, não temos dificuldade em reconhecer elementos que replicam a vitória de Afonso Henriques na Batalha de Ourique, onde não faltou a comparência do divino. Tal como Afonso, também João teve uma visão mística antes da batalha: depois de ter dado um “grandes espirro”, que tomou “por um grande agouro”, viu em sonhos a Igreja da Oliveira, de Guimarães, percebendo que se deveria encomendar à Senhora da Oliveira. Assim o fez:
eu vos peço Senhora de grande mercê, assim como vós ao dito rei D. Afonso Henrique foste princípio deste reino, sejais a mim vosso devoto defensor dele.
Vencida a batalha, D. João I de Portugal dirigiu-se a Guimarães em cumprimento de promessa. Junto ao altar da Senhora da Oliveira, cumpriu o seu voto, fazendo um conjunto significativo de doações, que incluíram o pelote e a lança que usara em Aljubarrota. Na mesma altura, tomou a decisão de mandaar fazer de novo a Colegiada da Oliveira, para cujos trabalhos terá enviado cem castelhanos feitos cativos em Aljubarrota.
A história da devoção de D. João I à Senhora da Oliveira foi contada no final do século XVII pelo Padre Torcato Peixoto de Azevedo no capítulo 80 das suas Memórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães, que a seguir se transcreve. O texto do cronista de Guimarães (que vai com o texto em versão actualizada) é muito interessante e por ele se percebe como o erro de se continuar a chamar Padrão do Salado ao Padrão de Santa Maria da Vitória.


CAPÍTULO 80.°
Como a Senhora de Oliveira foi sempre muito venerada pelos reis de Portugal, especialmente por el-rei D. João o 1.°
Todos os reis de Portugal veneraram com grande devoção a imagem de Santa Maria de Oliveira desta vila de Guimarães, e com ela a vinham visitar a esta sua igreja deixando-lhe muitas dádivas com que a honravam, mas nenhum fez mais pública, e manifesta ao mundo sua devoção como el-rei D. João o 1.º, nem com mão tão larga despendeu sua fazenda, regalias, e honras de seu poder real, como se viu na grandeza com que lhe mandava reedificar sua santa igreja: e por não ser obrada como ele queria à imitação da da Batalha, o sentiu com tanto excesso, que satisfez sua paixão com o mandar justiçar o mestre da pedraria.
Muitas foram as romarias que este rei fez a esta de. vota Senhora, e com tanta devoção que a pé fazia muitas dos lugares mui distantes, e aqui por muitas vezes se pesou a prata, que buscando um dos lances o centro da terra a outra o levava ao Céu vestido, e armado com suas armas: sobre tudo os muitos privilégios que deu aos caseiros, domésticos, e servidores da Senhora, que suposto seus antecessores já tivessem dado princípio, ele os confirmou, e declarou de sorte que os fez o património de Santa Maria de Oliveira, para que nunca pudessem ser quebrantados, e como tais os deixou recomendados a seus descendentes, e sucessores, pelo que foi sempre tão favorecido da mesma Senhora como manifestaram suas palavras quando a veio visitar a esta igreja.
Quando este rei D. João o 1.º foi dar batalha a el-rei D. João 1.º de Castela nos campos de Aljubarrota em 1385, já esta Senhora tinha o título de Oliveira, porque este título teve princípio do milagre de reverdecer a Oliveira, e diz Garibai L. 35 C. 3.°, que el-rei D. João depois da batalha dada, viera dar graças de seu vencimento a Nossa Senhora da Oliveira, e consta do livro dos milagres, que ele lhe falara desta maneira: “Senhora, eu confesso, e quero que todos saibam que eu por vossa virtude somente venci esta batalha, e que no ponto, e hora em que estava para nela entrar dei um grande espirro, o qual houve, e tomei por um grande agouro, pelo qual cessei por entonces, um pouco de mover para ela, no qual espaço me deitei de bruços, e não sei se dormindo, se acordado, porém posto em mui grande pensamento, vi em visão aquela vossa santa casa, tal que ainda agora a vejo com esta oliveira, e veio-me ao pensamento, e entendimento, que eu por exemplo do primeiro rei me devia encomendar a vós, e haver por tomadas as minhas armas da vossa mão: pelo qual eu logo votei, e prometi, o que agora faço, dizendo-vos em minha oração, eu vos peço Senhora de grande mercê, assim como vós ao dito rei D. Afonso Henrique foste princípio deste reino, sejais a mim vosso devoto defensor dele: — e entonces lhe mandou pôr as ditas armas em cima de seu altar, dizendo: — Vós Senhora mas destes, vós as tomai, e guardai pesando-se primeiro a prata com elas.”
Nesta batalha de Aljubarrota perdeu el-rei de Castela toda a flor da nobreza de seu reino, e por pouco não perdeu a vida, se não caminhara toda a noite, não reparando na pouca saúde com que fugia, e com grande susto e metesse em Santarém, que iam onze léguas, que a tudo o obrigava o medo da morte, o que refere Mariana Hist. L. 18. C. 9. E na campanha ficaram riquíssimos despojos, não dando a pressa da fugida lugar senão para salvar as vidas.
Entre as ricas peças da recâmara do rei que se acharam, foi um riquíssimo retábulo todo de prata, do presépio de Nosso Senhor, e doze anjos da mesma que el-rei deu de esmola a Nossa Senhora de Oliveira quando lhe veio render as graças, e lhe deu também a sua lança e o pelote que trazia sobre as armas, o que tudo ainda se conserva no tesouro desta igreja, e isto sai a público todos os anos no dia 14 de Agosto, dia em que foi a batalha.
No ano de 1385 venceu el-rei D. João o 1.º a el-rei de Castela, e desde então se celebra nesta vila de Guimarães no mesmo dia esta gloriosa batalha, e se põe no padrão da Senhora da Vitória a lança que o dito rei nele arvorou, e pendurado nela o seu pelote: o cabido faz solene procissão com músicas e danças, levando debaixo do pálio a imagem da Senhora da Oliveira, de prata, que saindo da Colegiada e discorrendo por certas ruas, volta ao padrão, aonde tendo-se levantado um altar se diz missa em acção de graças daquela Vitória; e antigamente costumava o cabido mandar levantar na igreja um túmulo de madeira bem ornado, e acabada a missa vinham ali rezar com solenidade um responso pela alma do dito rei etc., e hoje se não faz o túmulo, mas se canta o responso pelo rei, e por aqueles que na dita batalha faleceram.
Em acção de graças do vencimento desta batalha mandou o dito rei fazer dois mosteiros a Nossa Senhora, um no mesmo lugar em que a venceu, a que chamam a Batalha, possuído por religiosos de S. Domingos, tão magnífico, como escolhido para sepultura de seu corpo, e do de sua mulher a rainha D. Filipa de Lencastre etc. O outro foi esta Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, a quem deu cem Castelhanos dos cativos na batalha para trabalharem na sua obra, e sendo mandados fazer com igual majestade, foi diferente a execução dos mestres deles, como dissemos.
Padre Torcato Peixoto de Azevedo, Memórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães [manuscrito de 1692], Porto, Typographia da Revista, 1845, cap. 80, pp. 302-305.

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