O Pelote de D. João I (Museu de Alberto Sampaio, Guimarães) |
14 de Agosto de 1638
O orador frei Luís da Natividade, guardião
do Convento de S. Francisco de Guimarães, no sermão da festa do Pelote, a que
estavam presentes as autoridades espanholas, profetiza estar próxima a
restauração de Portugal.
(João Lopes de Faria, Efemérides
Vimaranenses, manuscrito da Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, vol. III,
p. 147 v.)
Ao pôr-do-sol do 14 de Agosto de 1385, no campo de S. Jorge, nas
imediações de Aljubarrota, estava consumada uma das mais importantes batalhas
da Idade Média ibérica. Os castelhanos, em debandada, abandonavam
precipitadamente o campo de batalha. Portugal reafirmava a sua independência e D.
João I como o seu rei.
A vitória de Aljubarrota agradeceu-a
o Mestre de Avis à Senhora da Oliveira, por quem, à imagem de outros reis
portugueses, tinha especial devoção particular, contando-se que, das várias
peregrinações que fez a Guimarães, se fez pesar em pesar perante a imagem da
Senhora, oferecendo-lhe o seu peso em prata. Antes do recontro de Aljubarrota,
o Mestre de Avis encomendou-se à Senhora da Oliveira. Após a vitória, dirigiu-se
a Guimarães, e depôs as suas armas no altar da Senhora, dizendo: Vós Senhora
mas deste, vós as tomai e guardai. A lança e o pelote que vestiu na batalha
ficaram depositados no altar da Colegiada. Depois, mandou refazer a Igreja, que
assumiu o aspecto que, no essencial, mantém nos dias que correm, porque, como
se pode ler numa inscrição afixada na fachada, houve batalha real com el-rei D. João de
Castela nos campos de Aljubarrota e foi dela vencedor e à honra da vitória que
lhe deu Santa Maria mandou fazer esta obra.
… foi começada esta; obra por;
mandado de el-rei D. João dado pela graça de Deus a este reino de Portugal,
filho do mui nobre rei D. Pedro de Portugal, este bom rei D. João houve batalha
real em campo; com el-rei D. João de Castela nos campos de Aljubarrota e foi dela
vencedor: à honra da vitória que lhe deu a virgem Santa Maria mandou fazer esta
obra…
Em frente ao pórtico da igreja da Colegiada de Guimarães ergue-se um alpendre
de granito, delimitado por quatro arcos, que cobre um cruzeiro com Cristo
crucificado e a Virgem Maria. Este padrão é dedicado a Santa Maria da Vitória.
A lança, o pelote e o padrão são peças fundamentais nas celebrações que
se passou a fazer em Guimarães para assinalar a vitória de Aljubarrota, a cada
14 de Agosto. Nesse dia, a
lança de D. João era colocada num dos arcos do Padrão, pendurando-se nela o
pelote. Na Colegiada formava-se uma procissão, que saía com a imagem da Senhora
da Oliveira e percorria as ruas, indo pela Porta da Vila e regressando pela da
Senhora da Guia. No altar que então se erguia no Padrão, celebrava-se uma missa
de acção de graças, que incluía a prédica de um orador sagrado.
Procissões como esta tinham lugar em
muitas outras terras portuguesas, assinalando a derrota dos castelhanos em
Aljubarrota na véspera da Nossa Senhora de Agosto de 1385, mas terão sido
interditas durante o domínio filipino. Não terá sido assim em Guimarães.
Ligado à confirmação da autonomia
nacional em 1385, o pelote também será envolvido nas movimentações que
conduzirão à restauração da independência em 1640.
Em 1638, com Portugal ainda sob
domínio do rei de Espanha, foi orador da festa do pelote Frei Luís da
Natividade, guardião do Convento de S. Francisco de Guimarães. O sermão que
então proferiu, e que seria publicado com o título Retrato de Portugal
Castelhano, ficou nos anais da literatura de invocação patriótica. Dele
disse Camilo Castelo Branco que era o melhor sermão em
português que conhecia.
Utilizando uma linguagem carregada
de imagens e de expressões simbólicas, o orador franciscano dirige-se ao pelote
roto, pobre, esfarrapado e alanceado que ocupava o centro a
celebração, transformando-o numa metáfora do Portugal daquele tempo: Para bem
saberdes quão perdido temos o reino, olhai para esse retrato dele e vê-lo-eis
bem pintado. (…) O Reino que nessa roupa o invicto Senhor D. João nosso
rei dedicou e sujeitou à Virgem da Oliveira, quando o vedes em tal estado, nele
vedes também qual esteja o Reino.
Um país velho e roto, mas não
irremediavelmente condenado. Ainda poderia ressurgir: Vejo-vos, pelote, velho e roto: vejo-vos atravessado com a vossa
própria lança (…). Só me resta para
consolação ver-vos diante desta Virgem da Oliveira, que se uma vez vos livrou
da morte, vos pode ainda ressuscitar a nova vida.
Conduzindo a atenção dos ouvintes
através do cenário que o rodeava, Frei Luís da Natividade, apontando para a
oliveira que estava naquela praça, recordou o milagre de 1342, que fez com que
a árvore, ressequida havia muito tempo, voltasse a ganhar vida e a deitar
ramos, quando ali foi colocada a cruz no Padrão de Nossa Senhora da Vitória.
Assim como a oliveira, também o pelote (Portugal), podia ganhar nova vida:
Ainda pode haver vida para vós, ainda pode haver século florente, e tornardes
neste a reverdecer, como essa [oliveira] reverdeceu ficando duzentos e
cinquenta anos a esta parte sempre verde.(…)
Neste sermão memorável, a
dissertação à volta do pelote é pretexto para apresentar uma visão profética da
restauração que não tardaria a chegar. A espaços, o pregador franciscano
afasta-se da linguagem metafórica e figurada e é bastante explícito nas suas
exortações de natureza patriótica: Mas se quereis que viva, floresça, seja
sempre verde, conservai-lhe a esta oliveira suas folhas, sua autoridade, seus
foros, suas liberdades, seus privilégios (…).
O laudel que D. João I envergou em
Aljubarrota, por força do tempo e dos danos a que estava sujeito sempre que era
manuseado e espetado numa lança, será hoje, provavelmente mais do que em 1638,
um pelote roto, pobre, esfarrapado. Mesmo assim, pelo que representa,
continua a ser o maior tesouro histórico que hoje se guarda no rico Museu de
Alberto Sampaio.
Frei Luís da Natividade era natural de Pinhel e faleceu em Lisboa no ano
de 1656
Pelote ou loudel ou laudel é uma peça de vestuário de linho acolchoado com lã, que se vestia, como protecção, por baixo da armadura
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