Devo prevenir que a minha participação nesta discussão não é feita a partir do lado de fora. Faço parte dos que olham para o Toural desde o lado de dentro, já que me incluo entre os que residem e trabalham perto do Toural, fazendo o seu atravessamento, quase sempre a pé, vezes sem conta. Portanto, o que se fizer no Toural, vai necessariamente interferir com o meu quotidiano. Mas também vai alterar a vida na cidade e o modo como nós a (vi)vemos.
Defendo que o Toural deve ser objecto de uma intervenção que o revitalize, que lhe acrescente condições para que volte a ser um centro cívico relevante em Guimarães e sinto que o projecto em discussão tem virtudes que podem dar uma excelente contribuição nesse sentido. Porém, há nele aspectos que me levantam reservas, umas maiores do que outras, provavelmente por défice de informação. Por exemplo:
1. Faltam estudos de carácter histórico e sociológico sobre o Toural. Tanto quanto se percebe, não houve grande trabalho de casa neste domínio, contrariando o que tinha sido (boa) doutrina na intervenção no Centro Histórico de Guimarães. Porventura, tal ausência justifica-se por se ter partido do princípio redutor de que, por se situar fora da antiga muralha, o Toural não fará parte do Centro Histórico, quando salta aos olhos a evidência de que esta praça é parte indissociável e vital da zona mais nobre de Guimarães.
2. Não me consta que existam estudos geológicos que demonstrem que o terreno a escavar não levantará dificuldades. Alguém com conhecimento do projecto já avançou que haveria sondagens, realizadas por método não invasivo, que indicarão que até seis metros de profundidade não haverá problemas de maior, e que daí para baixo as dificuldades começam a aparecer. Partindo do princípio de que tais sondagens serão fiáveis, não estou a ver como seis metros de profundidade possam ser suficientes para acomodar um aparcamento com dois pisos. Por outro lado, há referências não negligenciáveis que indicam que os problemas a resolver poderão não ser simples. É sabido que, no lado sul da praça, se situavam as “lajes do Toural”, uma formação rochosa em forma de ladeira difícil de vencer, mandada quebrar, à superfície, em meados do século XIX. No mesmo sentido aponta a informação transmitida por quem esteve ligado à implantação da fonte-monumento do Toural, no início da década de 1950: pela natureza do solo, não terá sido fácil escavar o reservatório de água que hoje existe por baixo da fonte. Portanto, nada nos garante que a escavação do Toural não venha a ser uma operação complexa de pirotecnia, com todos os inconvenientes, nomeadamente em matéria de segurança e desassossego, como normalmente sucede neste género de intervenções.
3. Também não foram divulgados estudos sobre o impacto da construção do subterrâneo nas estruturas dos edifícios que delimitam a praça. Ao que vejo e ao que ouço, a construção de subterrâneos para parqueamento e atravessamento do Toural pode acarretar riscos significativos para o conjunto edificado que margina a praça, constituído, essencialmente, por edifícios antigos, com destaque para a frente pombalina, que já dobra os duzentos anos (e que já ameaçou ceder, ainda no século XIX). Acautelar as estruturas desses edifícios não vai ser pequena obra de engenharia. A propósito, convirá recordar que em Guimarães, na Universidade do Minho, existe um Grupo de Estruturas que é uma referência mundial na área do estudo e da conservação de construções antigas.
4. Ao que tem sido avançado, existem estudos sobre a mobilidade rodoviária em Guimarães. Com a sua divulgação poderia resultar um maior esclarecimento e, certamente, maior compreensão das propostas avançadas. O Toural sempre foi o nó górdio da mobilidade urbana em Guimarães. Da informação disponibilizada até hoje, não resulta claro de que modo o projecto desenhado desata esse nó. Para um observador não especialista, a criação de um túnel para atravessamento rodoviário do Toural, não parece uma solução muito racional, já que não se afigura que vá melhorar a circulação, ou mesmo mantê-la como nos dias de hoje, podendo até criar novos estorvos dificilmente resolúveis. Depois, não parece evidente que a construção do túnel vá trazer mais espaço para os peões, uma vez que instala uma barreira física que separará, numa extensão significativa, o lado poente do lado nascente da praça, com a abertura da embocadura de entrada e correspondentes muretes de protecção. Por outro lado, tendo em conta que o Toural continuará a ser local de passagem para autocarros, nomeadamente de turismo, desconfio que a entrada do túnel terá que ter uma extensão muito significativa, se se respeitar um limite de inclinação dentro dos limites de segurança recomendados pela UE (até 5%). Ou seja: vai ser necessário atravessar meia praça, ou mesmo mais, para se entrar no túnel, saindo-se logo a seguir. Fará isto muito sentido?
5. Também se desconhece em que estudos sobre a oferta de parqueamento automóvel no centro da cidade se baseiam as soluções encontradas. Sem eles, parece resultar evidente que não existe nenhuma razão objectiva a justificar a construção de um novo parque de estacionamento no Toural, uma vez que nas imediações da praça e do Centro Histórico a oferta actual é manifestamente excedentária em relação à procura (sem grande esforço, conto mais de uma dezena de parques dentro de um raio que não ultrapassa 300 metros de distância em relação ao miolo da cidade) e continuará a sê-lo, mesmo que se eliminem uns quantos lugares na zona a intervir. Uma boa política de mobilidade apostará, certamente numa redução do acesso de automóveis ao centro da cidade. Criar mais estacionamento será um um estímulo para os que, mesmo sem necessidade, insistem em trazer o carro para dentro da cidade.
6. Também faria sentido que fossem divulgados os resultados dos estudos sobre o impacto das soluções propostas na dinâmica comercial da zona, se é que foram feitos. O que se vai dizendo, sem se saber em que base objectiva assentará, é que o parque no Toural faz falta para revitalizar o comércio tradicional. Não estou seguro disso. Parece-me até que poderá suceder exactamente o contrário, com o que ainda hoje resta do comércio tradicional a fechar portas para ceder espaço para o muito pouco tradicional comércio franchisado. Ou seja: o parque enterrado no Toural pode muito bem ser a pá de terra lançada que faltava sobre o comércio verdadeiramente tradicional do centro de Guimarães.
Sei que quem vai decidir nesta matéria tem plena consciência do que está em jogo, até pelo peso afectivo e simbólico desta praça emblemática, e que decidirá com prudência. E a prudência pode recomendar que só se avance com uma solução depois de se fazerem todos os estudos prévios que forem necessários e que agora parecem faltar.
O Toural já não é mexido há mais de meio século. Pode bem esperar mais um par de meses.
5 Comentários
Até que enfim que alguém escreve um texto que mostra bem o que está em jogo com este projecto que, a meu ver,é algo megalómano...
Não estando contra uma revitalização do Toural, estou, obviamente contra ESTA revitalização.
Espero que os próximos meses sejam de reflexão e que, quem de direito, "emende" este projecto...se é que querem realmente o bem de Guimarães, dos vimaranenses e do Toural.
1) Procurar propositadamente dificultar a entrada de carros na cidade parece-me algo absurdo. E dizer que as pessoas não têm necessidade de os trazer ainda mais. A qualidade da transportação pública em Guimarães e periferia não é apenas péssima, é ridícula. E enquanto assim for o carro é a única alternativa. E, por conseguinte, um parque de estacionamento no Toural é bem-vindo, sobretudo devido à centralidade da sua localização.
2) Os espaços do tal comércio franchisado de que fala com desprezo poderão ser a única hipótese de não vermos o centro de Guimarães deserto. Atraem gente, povoam as ruas e dão vida à cidade. E tiram as pessoas dos shoppings. Os espaços do denominado "comércio tradicional" são arcaicos e obsoletos. Oferecem preços elevados e oferta limitada de produtos. Não conseguem dar resposta, portanto, às necessidades dos consumidores actuais.
Quanto à mobilidade, estou de acordo. O túnel previsto, à partida, em nada ajudará a melhorar a fluidez do tráfego. Mas por outro lado também não consigo vislumbrar grandes alternativas. O túnel é o ponto-chave de toda a remodelação. Sem ele, a intervenção será apenas coméstica, e para isso mais vale estar quieto.
Obrigado. Apenas pretendi levantar algumas dúvidas que, a meu ver, ainda não foram esclarecidas, o que impossibilita que se possa formular uma ideia rigorosa do impacto do projecto na vida da cidade.
Riot,
1. Quanto ao absurdo de dificultar a entrada de carros na cidade, não estou seguro de que o seja assim tanto. Já vi essa ideia defendida por grandes urbanistas, em relação a Guimarães. E tenho visto essa ideia a ser aplicada noutras cidades, até com a imposição do pagamento de portagens. Porém, se ler com um pouco mais de atenção aquilo que aqui se escreveu, eu não defendi que se deveria “dificultar a entrada de carros na cidade”, nem que “as pessoas não têm necessidade de os trazer ainda mais”. Escrevi isto: “criar mais estacionamento será um estímulo para os que, mesmo sem necessidade, insistem em trazer o carro para dentro da cidade”. Concordará que não estimular não é bem a mesma coisa que dificultar. Concordo com o que diz sobre a qualidade dos transportes públicos em Guimarães. Ora, a meu ver, deve ser por aí, e não pela construção de mais parques de estacionamento, que o problema da mobilidade urbana deve ser resolvido. Até porque o que não falta em Guimarães, nos dias de hoje, são parques às moscas.
2. Não sei onde viu desprezo no que eu escrevi sobre o comércio franchisado. Não tenho qualquer tipo de preconceito, nomeadamente enquanto consumidor, em relação a esse comércio(também não tenho nada contra os shoppings). Aquilo que aqui se rebateu foi a ideia de que “o parque no Toural faz falta para revitalizar o comércio tradicional”. É evidente que não faz. Antes pelo contrário, acredito.
Permita-me que repita uma pergunta que já antes fiz: se o túnel não vai melhorar a fluidez do tráfego, fará sentido construí-lo? Para quê?
Mas não me parece que, se a intervenção for apenas à superfície, tenha que ficar pela mera cosmética. Recordo-lhe as intervenções na zona intramuros. Foram à superfície, ninguém o negará. Não foram mera cosmética, acredito que concordará comigo. Até trouxeram a Guimarães o reconhecimento da UNESCO como Património Mundial. Não seria um bom caminho prosseguir pela mesma linha, com tantas provas dadas, traçada por Fernando Távora e pelos que com ele colaboraram?
Eu acredito que sim.
Agora, na questão da mobilidade de facto não parece ajudar. Mas certamente que se farão os estudos devidos para averiguar se assim é. Se o cenário provável for o do túnel estar constantemente congestionado (como hoje em dia sucede no Toural), então o melhor é abandonar o projecto.
Quanto à semelhanças com a intervenção no centro histórico, será importante realçar que essa foi sobreudo uma operação de recuperação. A meu ver o Toural não necessita de algo semelhante.
Agrada-me, muito particularmente, a solução encontrada pelos autores do projecto para a Alameda, onde é alargado o espaço pedonal, conciliando-o com a circulação automóvel, que fica circunscrita ao lado voltado para Sul (S. Francisco). Estou em crer que se resolveriam muitos dos problemas que têm sido apontados ao projecto em discussão se a solução da Alameda fosse prolongada até ao Toural, entregando a maior parte da praça ao usufruto dos peões, reservando o lado poente para a circulação automóvel à superfície e deixando cair as propostas de desnivelamento da circulação rodoviária e de construção do aparcamento subterrâneo. Além do mais, os custos da intervenção, a todos os níveis, seriam bem menores.
Quanto aos estudos, de acordo. O que me parece é que deviam ter sido feitos antes, e não depois da obra projectada. Sempre se evitava seguir por caminhos sem se saber se têm saída. E perder tempo e energias com discussões inúteis. Foi esse o sentido do que aqui escrevi: Há estudos? Divulguem-se. Não há? Façam-se.
Quanto à natureza da intervenção desenvolvida na zona intramuros de Guimarães, não estamos de acordo. O que houve dentro de muros foi, mais do que uma obra de recuperação do existente, a sua requalificação, acrescentando-lhe obra nova. Assim deverá ser também, a meu ver, qualquer intervenção no Toural:
Defender a preservação da memória não é o mesmo que defender musealização da cidade, restituindo o espaço público e os monumentos a um passado que já não existe, nem volta. Toda a operação de revitalização do Centro Histórico de Guimarães foi feita com obra nova, produto de intervenções contemporâneas que transformaram as ruas e as praças de Guimarães em algo de substancialmente diferente, e melhor, daquilo que tinham sido no passado. Não obstante o seu carácter inovador, aquelas intervenções obedeceram a preocupações de preservação da memória e da identidade histórica. Dito por outras palavras: fez-se cidade nova, vinculando-a à identidade intemporal do velho burgo. Mexeu-se nas pedras, sem tocar na alma. Assim será, certamente, no Toural.