Pelote de D. João I, Museu de Alberto Sampaio, Guimarães (Fotografia de Anabela Matias Magalhães) |
A
peça têxtil que o Mestre de Avis envergou na Batalha de Aljubarrota
e que ofereceu à Senhora da Oliveira, que hoje figura no Museu de
Alberto Sampaio (MAS), sendo popularmente conhecida como “o
bacalhau”, e que, durante séculos, foi protagonista da Festa do
Pelote, que acontecia no dia 14 de Agosto junto ao Padrão da praça
da Oliveira, é um pelote ou é um loudel? E vestia-se por cima ou
por baixo da armadura metálica? As perguntas são simples, as
respostas é que não o parecem ser.
Depois
da Batalha de Aljubarrota, D. João I de Portugal dirigiu-se a
Guimarães para cumprir um voto à Senhora da Oliveira, perante cujo
altar, na igreja da Colegiada, depositou as armas que usara no prélio
(segundo o padre Torcato Peixoto de Azevedo, pelote, loudel, videles,
grojal e lança). A lança era a lança, o videles julgo que seria um
protector dos olhos, ou grojal, aliás gorjal, era o elemento da
armadura que protegia o pescoço. O pelote, a única peça das armas
doadas por D. João I que chegou aos nossos dias, seria uma peça
têxtil acolchoada, sem mangas, que se vestia por baixo da armadura,
e teria uma dupla função: amortecer os impactos das armas do
inimigo e reduzir o desconforto da utilização da armadura. Já o
loudel (ou laudel) era uma peça de vestuário colorida, geralmente
ornamentada com motivos heráldicos, que se envergava por cima da
armadura, servindo para identificar o seu portador. Todavia, em
diferentes fontes, temos visto o loudel descrito como aqui
descrevemos o pelote, e vive-versa.
Segundo
o Elucidário de Viterbo, o loudel seria acolchoado, o que
sugere que seria usado por baixo da armadura metálica, embora seja
geralmente descrito como sobre-cota, isto é, como peça de vestuário
que se envergava por cima da armadura. Segundo os dicionários, a
palavra loudel deriva do latim lodix (cobertor), o que parece
indicar que seria posto por cima da armadura (embora nos dicionários,
o loudel possa também aparecer, ele próprio, como uma armadura não
metálica, como se percebe da definição do Dicionário Houaiss:
"indumentária
militar com acolchoamento próprio para neutralizar as cutiladas e
golpes dados com armas brancas”).
O
padre António Caldas descreveu-o nos seus Apontamentos
para a História de Guimarães, quando nos faz a relação
dos objectos preciosos do tesouro da Colegiada:
Também
aqui se guarda, como objecto de valor histórico, o pelote de el-rei
D. João I, o qual – segundo a tradição – este monarca trazia
sobre a armadura, na memorável batalha de Aljubarrota, e é uma
espécie de casaco, sem gola e sem mangas.
Este
trajo usou-se entre nós desde o século XIV até fins do XVI.
O
de D. João I era primitivamente de brocado de ouro e seda; porém
agora pouco ouro se lhe divisa: tão gasto se acha do correr dos
tempos, e das mãos que têm pegado nele.
Não
obstante achar-se despojado do metal, que o devia tornar muito
pesado, ainda assim não pesa menos de seis a sete quilogramas, por
causa dos volumosos chumaços que tem, principalmente no peito.
Foi
oferecido a Nossa Senhora pelo referido monarca; e ainda hoje a 14 de
Agosto, aniversário da gloriosa batalha, é a veneranda relíquia
exposta ao público, suspensa de uma vara, num dos arcos do Padrão
de Nossa Senhora da Vitória.
Como
se vê, o padre Caldas diz que o pelote se envergava por cima da armadura.
Opinião diferente tinha um tal António Guimarães, que suspeito ser
Alfredo Guimarães, o futuro primeiro director do MAS, num texto
sobre a Batalha de Aljubarrota publicado em 1910 na revista Serões [N.º
63, Set. 1910, pp. 212-216]:
Os
documentos iconográficos, referentes a esta memorável batalha, são
raros e muitos deles de duvidosa autenticidade. Fernão Lopes afirma
que, ao termo da sua romagem a Santa Maria da Oliveira, D. João I
oferecera à Virgem o seu pelote e a sua lança. A lança já hoje
não aparece a comprovar a tradição; mas o pelote lá se patenteia
todos os anos, coçado e gasto, restos pouco elucidativos de antiga
grandeza. Pelo que se vê, o pelote ou jaquet, como lhe
chamava Froissart, ou ainda floternel, como o denominam outros
documentos, é um pesado casaco almofadado, de tecido grosseiro, que
parece ser destinado a adoçar as asperezas da armadura, sob a qual
se vestia.
Numa
comunicação ao I Congresso Histórico de Guimarães, Luís Stubbs
Saldanha Monteiro Bandeira parece dar razão a A. Guimarães, ao
descrever o pelote e o loudel [Actas do Congresso Histórico de Guimarães (1980), vol. II, pp. 367-382]:
Há
grande diferença entre um pelote e um loudel. O pelote era uma veste
interior, usada vulgarmente por debaixo da armadura, da camisa de
armas ou da cota. Consistia numa roupagem simples. Espécie de casaco
sem mangas e pouco comprido.
Geralmente
era fabricado com tecidos espessos e condicionados a formarem um
enchimento acolchoado ou almofadado. Parece que o seu uso foi
destinado a amortecer os golpe vibrados nas armas defensivas e também
a minorar o incómodo motivado pelas armaduras.
Loudel,
ou laudel, era uma peça de vestuário que se envergava sobre as
armas defensivas. Tinha por fim fazer distinguir ou reconhecer, por
uma cor ou por um símbolo heráldico, os que combatiam debaixo da
mesma.
No
meu ofício de
historiador, sempre que me deparo com dúvidas desta natureza, tendo a assumir como
mais correta a informação que consta nas fontes mais antigas. Ora,
até ao século XX, aquele que será hoje o objecto mais
emblemático do Museu de Alberto Sampaio sempre foi chamada de
pelote. Pelote será até que os especialistas esclareçam a questão em
definitivo.
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