O Padrão de quê? (1)

O Padrão da Oliveira (fotografia de Carlos Mesquita).


Na página da internet Turismo em Guimarães, apoiada pela Câmara, leio:
O Padrão do Salado, monumento nacional desde 1956 […] foi mandado construir no reinado de D. Afonso IV para comemorar a participação portuguesa na Batalha do Salado, travada em 1340.
Os curtos excertos que vão acima replicam dois erros que andam muito disseminados: o padrão não comemora a Batalha do Salado, nem foi classificado como monumento nacional em 1956, mas não dá voz a um terceiro erro, igualmente tão repetido que foi ganhando ares de verdade, segundo o qual teria sido mandado erigir por D. Afonso IV. O Padrão dito do Salado foi mandado erigir por um vimaranense que era mercador em Lisboa, Pedro Esteves, em voto a Santa Maria de Guimarães e foi classificado como monumento nacional em 5 de Abril de 1949.
Sendo Guimarães uma cidade que se distingue por cuidar bem dos seus monumentos, causa alguma perplexidade que se continue a tratar tão mal a informação que se divulga sobre eles.
Nos próximos dias irei voltar a este assunto, tão caro ao nosso saudoso amigo Fernando Teixeira, recentemente desaparecido. Começarei por publicar o que sobre este monumento e a sua tradição escreveu no início do século XVII o cónego Gaspar Estaço, no capítulo XLI da sua obra Várias antiguidades de Portugal.


Do milagre da Oliveira, de que Santa Maria de Guimarães houve o nome, e da vitória de Aljubarrota.
1. Reinando El-rei Dom Afonso IV, se fez a obra do Padrão, que está defronte da porta de Nossa Senhora da Oliveira, como consta de um letreiro, que nele está, o qual é o seguinte.

[À honra de Deus e de Santa Maria e por esta vila mais honrada ser e o povo fez fazer esta obra Pedro Esteves de Guimarães mercador morador em Lisboa filho de Estêvão Garcia e de Marta Peres na era M.ª CCCª Lª XXXª anos VIII dias de Setembro = M L a fez]*
2. Este Padrão é uma Cruz de pedra com a Imagem de Cristo crucificado, assentada sobre uma coluna e coberta de abóbada, que estriba em quatro esteios. A qual obra foi tão aceita a Deus, que naquele lugar se fizeram dali por diante muitos milagres. Duram ainda no arquivo desta Igreja dois pergaminhos, em que alguns estão trasladados, e foram primeiro escritos por um Afonso Peres, tabelião daquele tempo, dos quais nós escrevemos somente o primeiro, pela razão, que logo se virá, o qual é seguinte.
3. Senhor Afonso Peres, tabelião na vossa Vila de Guimarães, faço saber a V. m. que na Era de MCCCLXXX anos, oito dias de Setembro foi posta a Cruz na alvaçaria** de Guimarães, e a aduceu [aduziu] aí Pedro Esteves, nosso natural, filho que foi de Estêvão Garcia em outro tempo mercador em Guimarães, e a qual Cruz Gonçalo Esteves, irmão do dito Pedro Esteves, diz que foi vontade de Deus, que lhe deu a entender, que fosse a Normandia Anafrol*** e que comprasse a dita Cruz, e a aducesse [aduzisse] a este lugar de Guimarães, onde está assentada a par da oliveira; a qual oliveira, quando esta Cruz a par dela assentaram, era seca, e daquele dia a três dias começou de reverdecer e deitar ramos, e eu Afonso Peres Tabelião isto escrevi.
4. Não escrevo os outros milagres, porque já andam em um livro de letra de mão. Este trouxe, para que se saiba a origem do título da Senhora, que nesta igreja é venerada: porque até ao tempo dele acho que se chamou Santa Maria de Guimarães, e depois dele Santa Maria da Oliveira. Note-se de passagem que deste milagre não somente ficou à Senhora o título da Oliveira, mas esta Igreja, e esta Vila tomaram por insígnias a Imagem da mesma Senhora com um ramo de oliveira na mão.
5. E tornando ao padrão, debaixo do coberto dele, em lugar levantado, se pôs uma Imagem desta Senhora, e todos os milagres que naquele lugar se faziam à Virgem Sagrada se atribuíam e a ela por amor dela eram ali trazidos os aleijados e enfermos. A este padrão vai Cabido em Procissão todas as sextas-feiras e sábados de todo o ano, pelos Reis fundadores e benfeitores.
6. E em particular véspera de Nossa Senhora de Agosto, uma Procissão solene com os Frades de São Domingos e São Francisco, Câmara e povo, e depois que se recolhe se diz Missa , e pregação naquele lugar por memória da vitória de El-rei Dom João I, havida em tal dia. E se põem ali em lugar alto a lança e veste com que ele entrou na batalha.
7. Festeja esta Igreja aquele dia em louvor da Senhora da Oliveira, que deu a vitória a El-rei, como ele confessou, e lhe veio dar as graças e por isso a honrou com lhe mandar fazer duas casas: esta, e outra no lugar da vitória, muito mais avantajada em grandeza, arte, e majestade. Parece-me, se me não engano, que cá, onde a Senhora tinha sua habitação, houvera de ser feita aquela, esta lá por troféu da vitória; mas como ele escolheu aquela para sua sepultura, e de seus descendentes, meteu-se a humanidade nisto e trocou as sortes. Chama-se esta Nossa Senhora da Oliveira e a outra vulgarmente Nossa Senhora da Batalha, ou da Vitória, devendo de se chamar também, e com muita razão, da Oliveira, pois esta Senhora é a que deu a vitória e a que El-rei quis honrar, pela mercê que lhe fez.
Gaspar Estaço, Varias Anteguedades de Portugal, edição de Pedro Crasbeeck, 1625, pp. 182-184

* 8 de Setembro de 1342 (a inscrição está datada pela Era de César ou Hispânica, havendo que lhe retirar 38 anos para a converter para a Era de Cristo).
** Alvaçaria: palavra de significado desconhecido. Provavelmente corrupção de alcaçaria, que seria um espaço das cidades medievais dedicadas ao comércio comércio. A. L. de Carvalho levantou a hipótese de ser a alfândega.
*** Parece ser, como defendeu Albano Belino, a cidade portuária da Normandia Honfleur.
[continua aqui.]

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