Quando escrevi sobre o cortejo dos mil carros, que percorreu as ruas de
Guimarães em 30 de Outubro de 1943, houve quem recordasse a Marcha da Fome de
Pevidém, de que nos chegam vagos ecos que fazem alguns duvidar se terá mesmo
acontecido.
Graças
aos exercícios de equilibrismo do regime, Portugal manteve uma posição de neutralidade
durante a guerra que atravessou a primeira metade da década de 1940, o que livrou
o país de participar directamente nas confrontações militares, escapando aos
seus horrores, destruições e mortes, mas não o livrou dos seus efeitos. No seu
quotidiano, os portugueses sofriam a escassez de alimentos (não é que não
houvesse géneros, mas não chegavam a todos). Instalou-se o açambarcamento e
alimentou-se um mercado negro que se sustentava da especulação. Em 1943, o
Governo, que insistia em sustentar a imagem do oásis de normalidade, à margem
duma Europa em dramática convulsão, foi obrigado a ceder à realidade e impôs o racionamento
dos bens de primeira necessidade. Que nada resolveu. Com os géneros racionados faltavam
ou porque não chegavam a tempo ou porque eram manifestamente insuficientes, não
chegavam para todos, o mercado negro continuou a prosperar. A fome instalou-se
e com ela veio a revolta, que deu origem às maiores greves e manifestações
contra o Estado Novo de que há memória.
Na
clandestinidade, o Partido Comunista Português lançou um apelo à greve com a palavra de ordem “pelo
pão e pelos géneros”. As paralisações foram marcadas para os dias 8 e 9 de Maio
de 1944 e tiveram impacto significativo na região de Lisboa. Além das greves,
organizaram-se Marchas da Fome, que convergiram para Vila Franca de Xira.
Foi
neste contexto que aconteceu a Marcha da Fome de Pevidém. Operários vindos do
coração operário do Vale do Ave, desde Riba de Ave a Pevidém, marcharam até
Guimarães em silêncio, carregando as bandeiras negras da fome. Lutavam pelo mais
básico de todos os direitos: o direito ao pão. A manifestação foi engrossando
pelo caminho e, quando chegaram à cidade, já seriam mais de dois mil os que
marchavam. Dirigiram-se à Câmara Municipal, com o propósito de falar com o seu presidente.
Vencidas resistências, acabariam por ser recebidos. A sua mensagem era simples:
“temos fome, não podemos trabalhar”. Foram ouvidos, deram-lhes palavras
esperançosas. Regressaram a casa como tinham vindo. Pacificamente. E ficaram à
espera. Mas nada mudou.
Sobre
a Marcha da Fome de Pevidém de 8 de Maio nada sabemos, a não ser o que guardou
a memória dos que a viveram e nos deixaram o seu testemunho. Nos jornais da
terra, nenhuma palavra. Na reunião da Câmara que se seguiu à recepção dos
manifestantes, absoluto silêncio. Aparentemente, nada aconteceu naquela
segunda-feira de Maio de 1944.
A
Marcha da Fome de Pevidém foi recordada em 2012, no quadro da Capital Europeia
da Cultura, dando origem a um livro (A
Marcha da Fome de Pevidém — Memórias de um Passado na Inquietude do Agora,
de Luiza Cortezão e Francisco Neves), que motivou uma reportagem
de Samuel Silva, no Público (4 de Novembro de 2012).
Sobre
a marcha da fome falam dois democratas de Guimarães, em livros que são incontornáveis
para a compreensão da nossa história contemporânea, J. Santos Simões e Eduardo
Ribeiro.
Escreveu
Santos Simões, na página 45 do seu “Braga — Grito de Liberdade” (1999):
Com serenidade e
determinação inabaláveis, nasce das terras de trabalho de Pevidém e Riba d’ Ave
o que veio a designar-se como marcha da fome.
Tudo se conjugou para, sem
qualquer esforço, quase sem uma palavra, apenas movidos por um legítimo direito
de sobrevivência (a que não era estranho o drama das crianças) o povo se lançar
a caminho de Guimarães.
Foi uma manifestação
impressionante em que o silêncio só era ferido pela rudeza do bater dos socos
(de quem os tinha) e marcada pela angústia do trágico agitar das bandeiras
pretas.
Aos operários em marcha,
outros, muitos, se foram juntando ao longo da caminhada até à cidade. E também
a solidariedade dos que em Guimarães os acolheram mudos de espanto,
acompanhando-os, igualmente em silêncio, até à Câmara Municipal. Ouviram as
promessas e com elas partiram para suas casas, tão pobres quanto vieram.
Por
sua vez, Eduardo Ribeiro, registou o seu testemunho sobre as marchas da fome na
página 125 na sua obra “Insubmissão — Resistência ao Salazarismo” (2011):
A longo do País começou a
ser vulgar o povo fazer marchas da fome. Assim, a partir de Pevidém, forma-se
uma marcha da fome com homens e mulheres trazendo como estandarte bandeiras
pretas simbolizando a fome. Ao longo do percurso até à Câmara Municipal de Guimarães,
por onde passava a marcha, o povo foi-se juntando até à cidade. O povo
pretendia ser ouvido pelo Presidente da Câmara. As forças policiais e para
policiais dividiram-se pois a força da Legião Portuguesa defendia que deviam
ser dispersos à coronhada, enquanto o comandante da GNR defendia que o
Presidente devia recebê-los e prometer alguma coisa. Assim foi, tendo vencido o
bom senso.
Algumas semanas depois foi
distribuída alguma farinha pelas freguesias. Quem escreve estas linhas
recorda-se de ter participado na pesagem e registo de cartuchos de farinha na
freguesia de Gondar. Foi muito pouco, mas para quem não tinha nada... foi
alguma coisa, muito embora não correspondesse nem às necessidades nem ao apelo
do povo.
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