Naquele tempo, só
não foi apresentado como um mito urbano porque nem o conceito tinha entrado em
uso, nem as Taipas eram, propriamente, uma urbe. Mas podemos classificá-lo como
uma lenda contemporânea. Começou como o relato de um acontecimento misterioso e insólitos e espalhou-se como uma mancha de óleo na superfície das águas. Alguém, que
alguém conhecia, contou que alguém tinha contado a alguém que tinha avistado um
crocodilo nas Taipas, na margem ou nas águas (aqui o relato não era preciso) do
rio Ave.
Da
data exacta do avistamento não ficou registo, mas terá acontecido no início do
Verão do ano de 1980. Embora muitos desdenhassem da veracidade de tal aparição,
o certo é que, naqueles dias quentes, muito raro terá sido aquele que não pensou duas vezes
antes de mergulhar nas águas do Ave para se refrescar. Com a notícia, também veio a explicação, perfeitamente plausível, à luz do que já se vira acontecer
com leões, jibóias ou tartarugas de água doce. Alguém tinha trazido de África
um crocodilo recém-nascido que, cumprindo a sua natureza, cresceu e que (aqui os
relatos não coincidiam) fugiu ou foi libertado no rio, por já não ser possível
mantê-lo em cativeiro. Verdade ou mentira? cada qual tinha a sua opinião, mas é certo que, até mesmo entre
os mais cépticos, não faltaram intrépidos caçadores de crocodilos, que é como
quem diz, mirones, que dedicavam parte do seu tempo a escrutinar o rio Ave e as
suas margens, em busca do réptil aparentado como os dinossáurios, que, tanto quanto
se sabe, nunca foi apanhado. O que, tendo em conta a esperança de vida dos
crocodilos que, dizem os livros, abeira os oitenta anos, pode significar que,
se alguma vez existiu, o mais certo é que ainda exista.
Na
altura, era eu um jovem colaborador do jornal O Povo de Guimarães. “Fui enviado” às Taipas para apurar os factos e
escrever uma reportagem, se encontrasse matéria para a escrever. Fui à procura
do Crocodilo das Taipas, encontrei-o e até o entrevistei. Recordo que se estavam a aproximar as eleições presidenciais em que Ramalho Eanes seria eleito para um segundo mandato e que, por aqueles dias, iam sendo sucessivamente anunciados novos candidatos. A “reportagem”, que
saiu na edição do jornal do dia 10 de Julho de 1980, é obra aparentada com outras que vamos lendo por aí, em tempo de fake
news: foi escrita numa viagem de comboio entre a estação da Trindade e a
de Guimarães, depois de um exame na Faculdade de Letras.
Aqui fica.
O
Crocodilo das Taipas
OU
O ESTRANHO CASO DE UM LAGARTO AMBICIOSO
CROCODILO, Aligator; caimão; crocodilho;
delator; falso; fingido; jacaré; pérfido; refalsado: traidor.
in Dicionário de
Sinónimos da Tertúlia Edípica
Tanto
se tem falado por aí do crocodilo das Taipas que resolvemos pôr pés ao caminho.
Fomos à procura do tão falado bicho. Dele se diz que foi trazido de África
quando ainda media escassos centímetros e que, tendo sido lançado ao Rio Ave,
ali cresceu. Cresceu de tal forma que hoje toda a gente o procura, toda a gente
diz que alguém o viu, mas ninguém o encontra.
Tanto
se falava dele e ninguém o encontrava. Este crocodilo tem estranhas semelhanças
com o bacalhau: dizem sempre que ele “apareceu algures”, que “anda por lá”,
mas, quando o buscam ele já lá não está: “esteve”. Nunca se encontra onde o
procuram...
Vezes
sem conta percorremos o curso do rio entre Campelos e a Praia Seca, entre a
Praia Seca e Campelos, ora duma margem, ora da outra. E o raio do sáurio, nem
vê-lo!
Já
os pés estavam gastos de tanto caminhar em vão e as costas de tal forma
queimadas pelo sol abrasador que nelas se poderiam estrelar ovos com presunto,
e nós continuávamos na persistente atitude de quem se convenceu que quem porfia
sempre alcança, caminhando novamente rio acima à procura do animal de que toda
a gente fala e que já teve honras de jornais e de rádio.
Já
tínhamos encontrado de tudo: gatos, sapos, cães, saltões, cobras, lagartos e
lorpas que procuram crocodilos. E. do nosso animal, nem pó...
Íamos
já a meio caminho entre Campelos e a Ponte, quando ouvimos alguém chamar-nos:
—
Pssst! Pssst!
Olhamos
para um lado, olhamos para o outro, olhamos para todos os lados para onde é
possível olhar. Não vemos ninguém. Continuamos a caminhar como se nada fosse,
dizendo para os nossos botões: “Quem for que chame outra vez.”
Ainda
não tínhamos dado meia dúzia de passos, e já nos chamavam outra vez (“Este
estratagema resulta sempre...”):
—
Hei! Aqui em cima!
Olhamos
agora para o alto, de onde nos chamavam. Um calafrio percorre-nos a espinha de
alto a baixo. Sentimos os pés ficarem pregados ao solo e a nossa voz, que
queria gritar com toda a força, estava incapaz de soltar um ganido que fosse.
Era
ele.
Estava
dependurado pelo rabo no braço duma árvore, balouçando o corpo pendente a
fazendo-nos caretas gozonas. Ria-se, com enormes fauces arreganhadas, da nossa
figura de parvo a olhar para o ar. Não tarda em perguntar:
—
O senhor perdeu alguma coisa?
—
?...!...
—É
que já o vi passar tantas vezes para cima e para baixo, a olhar para todos os
lados, que pensei que talvez tivesse perdido algum parafuso...
E
continua a rir-se com o mesmo ar crocodilesco.
A
pouco e pouco, recobramos a segurança. Conseguimos já balbuciar algumas
palavras que devem ter soado como ténues gargarejos, de tanto baterem os dentes
de medo.
—
O senhor é que é o crocodilo que agora aparece por aqui?
—
Então o que é que pensa? Acha que tenho cara disso?
—
Bem — dizemos nós, a medo —, se não tem, parece...
A
resposta veio pronta:
—
Saiba então que eu sou um genuíno jacaré latino-americano. Então que é que você
tem, homem? Está para aí a tremer que até parece que está com frio...
Continuamos
abismados a olhar para aquela figura grotesca que balouça perante os nossos
olhos e que fala com tanta arrogância a desprender-se da voz escarninha.
Ousamos perguntar:
—
Então como é que o Sr. Jacaré veio aqui parar? Dizem para aí que foi trazido de
África na mala de alguém que de lá vinha com elas aviadas...
Ele
olha para nós ao mesmo tempo que desce, de um salto, do seu baloiço.
—
Tudo isso são balelas.
Toma
uma pose imponente, de corpo bem estendido, mas firme nos seus contornos.
Aproxima-se de nós e diz, baixinho, como quem está a revelar um segredo
palpitante:
—
Eu vou-lhe contar. Você deve imaginar, lá para a minha terra as coisas vão más
para os jacarés como eu. Nos últimos tempos andam lá com a mania de nos darem
pontapés no traseiro, meterem-nos em malas, e mandarem-nos para a terra do
nosso querido Tio Sam sem bilhete de retomo. Eu, cá por mim, enquanto era
tempo, fui-me raspando de mansinho para terras de melhores águas. E aqui vim
ter como podia.
—
E por que é que o Sr. Jacaré veio ter precisamente aqui?
—
É que, como você deve saber tão bem como eu, parece que por cá as coisas parece
que caminham bem. Lá na minha terra, através da informação, eu fiquei a saber
que era possível encontrar aqui um lugar para um jacaré desocupado. E cá estou
eu.
—
E o que é que o Sr. Jacaré pensa fazer? Quais os seus projectos para o futuro?
Ele
fica a olhar-nos por algum tempo com um esgar misterioso. Passados breves
instantes, diz com a sua voz matreira, não conseguindo disfarçar uma certa dose
de altivez:
—
Então você ainda não reparou? Eu espero ser convidado a candidatar-me à
Presidência da República, uma vez que sou detentor de todas as características
indicadas: tenho poucos miolos, mas a minha presença em público é
extraordinariamente vistosa e imponente: quem me vir uma vez, nunca mais me
esquece. Sou capaz de mentir com quantos dentes tenho — e olhe que tenho
muitos... — sem me rir. Todavia, eu sou capaz dos maiores e mais fotogénicos
sorrisos do mundo. Por outro lado, ao contrário de certos quadrúpedes
ruminantes que por aí andam, nunca me comprometi com o antigo regime português,
nem estive em qualquer guerra africana (ao contrário do que, ao que parece,
andam para aí a insinuar...?), não tenho nada a ver com o Campo de Férias de S.
Nicolau.
Ficamos
a saber que este Sr. Jacaré latino-americano é extremamente ambicioso e cheio
de pretensões. Perguntamos se não teme a concorrência dos candidatos já
anunciados pelo bloco político-zoológico no qual ele se insere.
—
Espero, dentro em pouco tempo, conquistar a desistência e o apoio dos carneiros
em favor da minha causa. Para isso, comecei já sub-repticiamente a minha
pré-campanha eleitoral, tendo já tido acesso à rádio e à imprensa. Dentro em
breve será marcada uma conferência de imprensa em que anunciarei oficialmente a
minha predisposição em aceitar um convite no sentido de me candidatar a
presidente, se para tal for solicitado pela opinião pública. Entretanto, tenho
já garantida a colaboração duma equipa de camelos espanhóis, que irão
participar na minha campanha eleitoral como técnicos de marketing. Posso também anunciar desde já que pedi ao Guedes
pianista para fazer a música para o hino da minha campanha, pedido ao qual ele
acedeu imediatamente, saindo a público o disco dentro em poucos dias. É mais ou
menos assim:
(Começa
a entoar os primeiros versos acompanhando-se com o bater ritmado das suas patas
no chão e da causa na árvore mais próxima, que acabou por cair com grande
estrondo.)
Sei quem
ele é.
Ele é bom
rapaz.
Um pouco
tímido até.
Vivia no
sonho de ser presidente
Yé-Yé-Yé
Tudo
nos parece perfeitamente orquestrado. Sem dúvida que, pelo que tem de insólito,
este potencial candidato a Belém parte em posição vantajosa relativamente a uns
tantos outros.
A
perguntinha indiscreta surge naturalmente:
—
Mas, para tudo isso, você vai precisar de muito dinheiro. De onde lhe vêm os
fundos?
—
Olhe, se quer saber, vá à bruxa...
E,
sem mais palavras, lá vai ele
rastejando
dissimuladamente, rumo às águas do rio que correm pachorrentamente por entre os
campos verdes. Depois, apenas vemos uma pirâmide de bolhas de ar que, vindas do
fundo, se desfazem quando atingem a tona da água.
Decerto
que não acreditam nesta estranha e fabulosa figura deslizante, que corre rio
acima rumo a mais altos voos. Decerto que não acreditam neste singular jacaré
latino americano que se mete Rio Ave adentro. Mas será que têm a certeza que
não acreditam noutros crocodilos bem dissimulados que todos os dias se
introduzem dentro das vossas casas através desse execrável aparelho que se
chama televisão?
Reparem
bem em certas figuras que todos os dias vos espreitam através desse vidro
difusor de poluição visual e verão se não encontram nelas estranhas semelhanças
com o personagem que vos acabamos de descrever. Olhem-nos bem e ainda um dia
destes dirão:
É
ele!
Então,
tomem cuidado. Mantenham as distâncias. Desliguem o aparelho. Tomem as devidas
precauções para que ele vos não entre em casa. Fechem as janelas. Tranquem as
portas.
Lagarto,
lagarto...
António Amaro das Neves
[Publicado em: O
Povo de Guimarães, 10 de Julho de 1980]
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