A
propósito do estado da velha igreja de Santa Maria de Corvite,
recordo um texto que Santos Simões escreveu na sequência de uma
visita que fez ao monumento, no Verão de 2003. O texto carrega um
alerta, lembrando a tantas vezes repetida urgência de uma
intervenção que protegesse e acautelasse os valores patrimoniais
únicos que aquelas pobres paredes resguardam, e também uma
esperança, a de que o ressurgimento da freguesia de Corvite, que
entraria em vigor no dia 1 de Janeiro do ano seguinte contribuísse
para ajudar a salvar o que ainda restava do monumento. É certo que,
entretanto, esta igreja já foi classificada como monumento de
interesse público e lhe foi fixada uma zona especial de protecção.
Mas, que se saiba, nada mais aconteceu.
Entretanto,
a freguesia de Corvite, foi e já não é.
O
texto aqui fica. As fotografias que o acompanham, tirei-as em 23 de
Junho de 2001.
Quem
salva o tesouro guardado (?) na igreja de Santa Maria de Corvite?
por
J. Santos Simões
Como
sempre, a meia encosta, lá está a igreja de Corvite. Faz pena o
abandono a que está votada. É espectáculo surpreendentemente
triste neste Minho agora encharcado de verde, aquele estendal de feno
descuidado, erva desafeiçoada, também ela triste de seca.
Paradoxalmente, só gritam, mesmo ao lado da igreja, no cemitério
velho, duas sepulturas em mármore branco, uma delas com gritantes
flores vermelhas. A porta, onde se adivinha uma importância antiga,
ameaça desfazer-se ante os nossos olhos que, ao erguerem-se,
encontram, a norte e a sul do corpo da nave, uma inqualificável
cornija de cimento que substituiu a que era e (devia continuar) em
pedra, que se mantém na parte restante. Este pseudo restauro só se
compara à cobertura em telha à portuguesa de cano e capa quando
devia ser telha de canudo. Parece que em 1988 houve (também?) uma
intervenção dentro da igreja que pôs a descoberto um interessante
conjunto de pintura a fresco. A caquéctica porta cerrada, parece ser
a montra do desmazelo que se oculta atrás dela. Adivinha-se o
pavimento em terra batida e os altares arrumados e os frescos
abandonados. Tudo isto é uma imagem oculta do nosso olhar, mas
efectivamente real, como acontece com a maior parte do nosso
património cultural. As raízes da igreja, que vêm pelo menos de
1220, quase oito séculos, deviam merecer outra atenção. Do
alpendre, nem rasto, deve ter desaparecido antes de 1930. Oxalá que
a recriação da freguesia de Corvite ajude a salvar o que ainda
eventualmente reste.
Para
isso é necessário, desde já, no mínimo, que algumas telhas
deslocadas sejam repostas no seu lugar para evitar que chova dentro
da igreja, deteriorando o tecto da nave, que é em madeira. Deve ser
tomado este cuidado, ou mais outro qualquer, que uma vistoria ao
interior da igreja aconselhe. Mas será sempre coisa de pouca monta
em trabalho e dinheiro. Até a Comissão de Moradores o pode (deve)
enquanto não cheguem melhores dias!
A
visita que fiz ao local, no dia 19 deste mês, levou-me a indagar
tudo o que se escreveu sobre o templo. Não foi coisa de pequena
monta, como se pode ver no texto e no final dele.
Na
Vimaranis Monumenta Historica, não procurei mais, depois de
ter encontrado nas inquisições do rei D. Afonso II, de 1220, uma
referência à igreja. É a baliza mais antiga, pese embora a actual
construção nada ter a ver com essa sua antepassada. Quanto à
igreja propriamente dita, só encontrei dois registos originais: o de
Martins Sarmento e o do Abade de Tagilde, que a seguir transcrevo.
Escreve
Sarnento nos Dispersos: A igreja de Corvite merece algumas
palavras. Não sendo muito antiga, porque já não é a primitiva, é
ainda assim uma das mais antigas de todo o vale do Ave, pertencente
ao nosso concelho, e em todo o caso um curioso tipo de igrejelha
rural minhota. É pequena e baixa, precedida dum vestíbulo
alpendurado, acessível só por dois lados. O alpendre firma-se em
duas colunas grosseiras; mas, como no ponto, em que devia assentar a
coluna da direita, existia um pequeno penedo que aflorava um pouco
acima do nível do pavimento, achou-se inútil quebrá-lo para
assentar a base das colunas num mesmo plano, de sorte que a coluna da
direita é mais curta que a da esquerda. Toda a construção revela
uma tal pobreza, que, entrando-se nela, sente-se uma surpresa
agradável, ao encontrar dois altares de talha que não deixa de ter
certo valor; mas sente-se logo em seguida uma impressão muito
desagradável, reparando em que, para ajustar o bordo duma tábua de
castanho contra os relevos da talha, em vez de recortar a tábua, se
rompeu brutalmente pelos relevos a formão e martelo. Simplificou-se
o trabalho, sem atenção ao prejuízo irreparável duma obra de
arte, que merecia algum respeito. Ainda bem que os altares de talha
não foram vendidos, como tem acontecido noutras paróquias. ¡E se
as juntas de paróquia apenas vendessem a talha das suas igrejas!;
Sarmento também se lhe refere nos Apontamentos de Arqueologia,
onde se pode ler: desci a Corvite e fui ver a igreja. É
extremamente pobre. De curiosos tem restos de carneiros, alguns
desenterrados debaixo do alpendre da frente – alpendre escorado em
dois esteios, um dos quais mui mais curto por assentar num penedo que
passa acima do nível da soleira; na capela mor, pelo lado de fora,
há marcas de pedreiro, mas pouco variadas. Só vi variedade de duas,
e uma cruz muito bem gravada noutra pedra de aparelho.(...) os dois
altares laterais, pequenos, têm todavia seu valor, por serem obra de
talha, com algumas figuras em relevo, parte das quais os bentos
esconderam com tábuas de castanho, para levantar a banqueta. E o
pior é que parece que afundaram as figuras em relevo, para não
entrarem nas tábuas de castanho! As pinturas destes altares também
parecem antigas, embora não devam exceder o século XVII.
O
Abade de Tagilde, por seu lado, escreveu: CORVITE/Santa Maria (Nª
Sª da Expectação). Em 1220 a Ordem de Malta tinha aqui quatro
casais e uma vinha. Vigairariado arcediago de Sta Cristina de Longos.
12$000 e pé d’altar, 71 fogos.
A
igreja tem três altares, mor,
S.ª do Rosário e Sr.do Bonfim. Tem uma sineira sobre a fachada e
arco de meia volta a porta principal. É provavelmente 2.ª
reconstrução pois na parede exterior encontram-se duas pedras com
lavores toscos, que talvez foram cornijas da antiga. (1)
Uma
referência, ainda, ao centenário caminho de acesso. Não o utilizei
(fui de automóvel, por estrada, até o caminho acabar numa
propriedade privada, que fica a escassos cem metros da igreja), mas
adivinho-o em muito mau estado. Aliás esta desgraça é pecha
antiga-
«O
mandado do visitador de 1571 refere: “os fregueses(...) e assim
consertarão o caminho que vem para a igreja que está na posse de
Tarrio pena de quatrocentos reais até o dito dia (natal)». (2)
Mas,
ultrapassando as referências feitas à singela igreja,
principalmente por Sarmento, a intervenção de 1988 (se foi negativa
no que concerne ao exterior, quanto à cornija e telhado), o mesmo se
não pode dizer da remoção do reboco exterior e principalmente do
interior, que fez aparecer frescos em grande parte das paredes,
frescos da maior importância que deviam obrigar à conclusão da
intervenção que já ocorreu há quinze anos!!. Pese embora a
importância do imóvel, a edição de 1993 do Património
Classificado,
do então Secretariado da Cultura, não o registou como património
classificado já que, nem sequer a Câmara Municipal o reconheceu
ainda como valor
concelhio. (3)
Quem
quiser obter uma referência mais pormenorizada, procure-a, na
Internet, no sítio dos Monumentos Nacionais.
(1)Manuscrito da Sociedade Martins Sarmento “Apontamentos para a história do concelho de Guimarães coligidos por João Gomes de Oliveira Guimarães Reitor de S. Vicente de Mascotelos” 30 de Agosto de 1884, p 22, livro 1º
(2) In Ensino e Arte na região de Guimarães através dos livros de visitações do séc. XVI de Franquelim Neiva Soares, Revista de Guimarães nº93, p.374
(3) No concelho de Guimarães há, apenas, registados como valores concelhios, a Casa do Proposto e a Capela do Bom Despacho, em Gominhães.
Outras
obras consultadas:
Inquérito
Paroquial de 1842, Revista de Guimarães nº 108, 1998, pp
231 a 233 - nenhuma referência ao edifício da Igreja.
Portugal
Antigo e Moderno de Augusto Soares d’Azevedo Barbosa de Pinho
Leal, Lisboa, 1874, vol.2, pp.407,408 - nenhuma referência ao
edifício da Igreja.
Dicionário
Corográfico de Portugal Continental e Insular de Américo Costa,
vol.V, pp. 781 a 783 - nenhuma referência ao edifício da Igreja.
Corografia
Portuguesa de P. António Carvalho da Costa, tomo primeiro, p.93
- nenhuma referência ao edifício da Igreja.
Guia
de Portugal, Entre-Douro e Minho – II Minho, 1965, p. 1252,
Sant’Anna Dionísio transcreve parte do texto de Sarmento, que aqui
publico
Guimarães,
Terras de Santa Maria de Adelaide Pereira de Moraes, Guimarães,
1978, pp 86-87, no essencial, transcreve Sarmento.
0 Comentários