Memórias Paroquiais de 1758: São Salvador de Briteiros

O Solar da Ponte, numa fotografia de 1933.

Em São Salvador de Briteiros tinha Francisco Martins Sarmento a casa da sua família de onde avistava o monte da Citânia, onde aconteciam as lendas de mouras encantadas que escutou na infância e havia vestígios de uma antiga povoação que um dia, muito mais tarde, se decidiu explorar. Já tinha, então, entrado na quinta década da sua existência mas, com os seus achados e a inteligência com que os interpretou, ainda foi a tempo de se tornar num dos arqueólogos mais respeitados na Europa do seu tempo e numa das figuras centrais da história da arqueologia portuguesa. Foi no solar da Ponte que, um dia, acolheu um foragido à justiça, cuja identidade era facilmente posta a descoberto pelas picadas das bexigas que trazia no rosto, Camilo Castelo Branco, um dos mais brilhantes e prolíficos escritores portugueses daquele e de todos os tempos. Estas são memórias que se guardam no Solar da Ponte, hoje Museu da Cultura Castreja.
Da Citânia de Briteiros fala a memória paroquial que o pároco de Santo Estêvão Briteiros escreveu em 1758. Ao contrário do que se percebe do que escreveram alguns dos seus pares nas respostas ao mesmo inquérito, o abade João da Costa Ribeiro, era homem letrado e esmerou-se no que escreveu. Vale a pena ler.

São Salvador de Briteiros
Freguesia do Salvador de Briteiros
Briteiros, freguesia na Província de Entre-Douro-e-Minho, Arcebispado de Braga, termo e comarca da vila de Guimarães, distando de uma e outra povoação légua e meia, por ficar no meio delas a sua situação. Seus moradores se servem do correio de qualquer destas duas povoações, sendo governada pelas justiças da mesma vila de que é termo. Fica distante da Corte de Lisboa sessenta e uma légua.
Está num vale na raiz do célebre monte Citânia, ou Cinânia, que compreende a melhor parte dele o distrito da freguesia. Confina, pelo Nascente, com a freguesia do Salvador de Donim; pelo Poente, com as freguesias de Santo Estêvão da Silva Escura, a que chamam vulgarmente de Briteiros, São Cláudio do Barco, São Tomé de Caldelas e São Lourenço de Sande; pelo Norte, com as freguesias do Salvador de Pedralva, Santa Maria de Sobreposta, São Martinho de Espinho e Santa Leocádia de Briteiros.
A igreja paroquial está dentro do povoado. É de uma só nave. Tem seis altares. No altar-mor está o Santíssimo Sacramento, com sua confraria. Cobre a tribuna um painel de boa pintura romana, em que se vê o passo de Cristo transfigurado no Tabor, que é o orago desta freguesia, ficando, em dois nichos do retábulo, de uma parte, a imagem de Santo António, e, de outra, a do Menino Deus. Da parte da Epístola, está o altar da Senhora das Necessidades, com as imagens de São Sebastião e de São Romão. É imagem milagrosa e procurada de muitos enfermos. A capela de Nossa Senhora do Desterro, com o Menino Deus e São José. A Quinta do Paço, desta freguesia, está vinculada a ela e é, de presente, administrador deste vínculo António de Vasconcelos Távora. Tem sua irmandade. E o altar das Almas, com confraria, e tem um legado de missas para os domingos e dias santos, pela manhã. Da parte do Evangelho, está o altar da Senhora do Rosário e, metida num túmulo, a Senhora da Boa Morte, e, no retábulo, as imagens de São João Baptista com o Menino Deus e o Arcanjo São Miguel, e o altar da Senhora das Neves.
O pároco é abade apresentado pelos Arcebispos de Braga. Tem de renda, um ano por outro, com frutos certos e incertos, quatrocentos mil réis.
Há nesta freguesia a ermida de Santa Margarida, colocada dentro da Quinta do Paço, num terreiro público, a qual pertence ao mesmo Senhor da quinta. Algumas vezes no ano vêm a freguesia do Salvador de Donim fazer clamor a esta ermida. Porém, não é em dias determinados, mas a freguesia de Santa Leocádia de Briteiros vai no seu próprio dia em clamor à Santa.
Há nesta freguesia os lugares seguintes: Agrela, Ventuzela, Mata, Carvalho, Casas Novas, Requeixo, Torre, Devesas, Agro, Ruibal e Igreja.
Tem oitenta e oito vizinhos ou fogos e, pessoas de sacramento, trezentas.
Não padeceu alguma ruína no terramoto de 1755.
Os frutos que aqui se colhem são milho grosso, miúdo, painço, feijão, castanha, vinho verde, frutas, assim de espinho como das outras, e azeite.
Dentro desta freguesia, em pouca distância da igreja, entre o lugar da Mata e o de Carvalho, dá princípio uma calçada para o monte Citânia, na coroa do qual se conservam vestígios evidentes de que foi povoação grande, pois, rompendo esta calçada pelo monte acima, no fim dela se encontra um muro, o qual cercava esta antiga povoação para o Poente e Sul. E para o Nascente não necessitava de muro, por ser o monte desta parte despenhado. Pela parte do Norte, ainda se vê o muro unido com a terra e em muitas partes estão pedras levantadas. Para baixo, corre uma calçada, que vai cair junto à levada do Paço. Terá, em todo este circuito, setecentas braças. Encontra-se outra calçada que, rodeando o monte, se mete na freguesia de Pedralva. Para a parte desta freguesia se vêem ruínas de fortalezas, das quais se descobrem os primeiros fiados de pedra, em partes de três palmos e em outras de mais. Encontra-se outra muralha, que mostra ser muito mais forte que as mais que se descobrem, por ser de pedras grandes. No alto do monte, mostra terceira muralha, que ainda em partes tem nove palmos de alto. Cercam o monte, pela parte do Norte e Poente. E, por entre os muros da parte do Norte e Nascente, se vêem muitos alicerces de casas que, ao parecer, eram redondas e pequenas. E, de grandes montes de pedras que se acham divididos neste sítio, se infere seriam também casas maiores. O que tudo faz grande corroboração a tradição de que aqui foi a povoação da Citânia, da qual dizem foi natural São Dâmaso, Papa. Jorge Cardoso trata, aos quatro de Janeiro, de sua irmã a Santa Iria Virgem, como se vê no primeiro tomo do seu Agiológio Lusitano, pág. 30. Onófrio Panvínio, tratando de São Dâmaso, afirma ser Egitaniense, que alguns querem que seja Citânia e não a cidade da Guarda, como outros. João de Barros, nas Antiguidades de Entre-Douro-e-Minho, afirma ser São Dâmaso natural de Pedralva e que ainda no seu tempo mostravam os velhos umas casas antigas, onde foi nascido este Pontífice Santo. E, como Pedralva parte com a mesma Citânia e freguesia do Salvador de Briteiros, fica a opinião deste grande investigador de antiguidades, concedendo a dos antigos moradores desta freguesia. Também há autores que afirmam ser São Torcato, bispo e mártir, natural da Citânia, cujo corpo se venera incorrupto no antigo mosteiro de seu nome, distante desta freguesia uma légua, a quem veneram os moradores destas vizinhanças, com romagens e clamores, no dia de sua festa e pelo decurso do ano.
Por esta freguesia passa um rio chamado de Briteiros, que corre do Norte a Sul. Atravessam-no duas pontes nesta freguesia, uma chamada da Pedra, que tem um arco junto a um grande bocal quadrado, tudo de cantaria, e, a outra, tem dois bocais de pedra, mais toscos. E em três partes mais se atravessa por padieiras, postas em balaústres de pedra. Nasce na freguesia do Salvador de Pedralva, não junto, mas de várias fontes e regos, como aqui lhes chamam, e nem por isso é muito abundante logo na sua fonte. Mas, com várias levadas que encontra em toda a sua corrente e em si recolhe, corre mais carregado de águas e acaba no rio Ave, a pouca distância, que não é mais de meia légua. Grande espaço de caminho é por entre penedos e penhascos, e por esta causa corre muito inquieto e bravo. As levadas que incorpora consigo são a levada da Quintã ou do Paço, a do Casal, a do Carvalho, a da Ponte, a da Agrela ou Ventuzela, a do Outeiro, a do Araújo, a do Escalheiral, a do Lousal, a do Requeixo e a Levada da Mó. Todas estas águas unidas enriquecem este rio e fazem os campos por onde passam férteis, frescos e abundantes de toda a casta de frutos, sendo toda a sua corrente, desde que desce do monte e entra nesta freguesia até chegar ao rio Ave, por entre campos cultivados e uveiras enlaçadas em carvalhos e castanheiros. Não é navegável, nem necessita de embarcação, porque, além de ser estreito, que não chega a ter duas braças e meia de largo, pelo tempo de Verão, ainda que sempre leva água, é esta tão pouca, que em muitas partes se atravessa a pé enxuto, saltando-se os seus regos sem ofensa. Faz trabalhar grande quantidade de moinhos, principalmente no Inverno. Nesta freguesia, quase todos os moradores têm moinho próprio, e alguns têm dois e três, para o que o cortam em açudes. E também por esta causa não pode admitir nenhum género de embarcação. Tem mais um lagar de azeite, que trabalha com a água da levada do Paço. Cria este rio trutas, escalos e bogas de singular sabor e, por isso, muitos o buscam e aqui os vêm pescar, o que fazem livremente.
nesta freguesia dez fontes de que se servem os seus moradores para o seu uso e, ainda que são todas de boas águas, nenhuma delas tem virtude particular.
E, ao mais que continha o papel, não tenho que dizer.
Salvador de Briteiros, 7 de Março de 1758.
O abade João da Costa Ribeiro.
José de Araújo, abade do Salvador de Donim.

Briteiros, S. Salvador de”, Dicionário Geográfico de Portugal (Memórias Paroquiais), Arquivo Nacional-Torre do Tombo, Vol. 17, n.º 70, p. 1227 a 1231.

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