"Raul Brandão Existiu?": uma pergunta de Santos Simões em 1980

Pormenor de pintura representando o Vale de Gatão, que Raul Brandão dedicou a Teixeira de Pascoais ("Ao poeta Teixeira de Pascoaes, o pintor Raul Brandão. Outono de 1928") e que serviu de capa ao catálogo da exposição da Biblioteca Nacional de 1980.

No dia 5 de Dezembro de 1980 passaram cinquenta anos sobre a morte do escritor Raul Brandão. Praticamente não houve comemorações dignas desse nome, a não ser uma grande exposição biblio-iconográfica em Lisboa, na Biblioteca Nacional. Em Guimarães, a homenagem a Brandão resumiu-se a uma romagem ao túmulo do escritor no cemitério da Atouguia, promovida pelo Centro de Arte e Recreio e pelo Teatro de Ensaio Raul Brandão. Por essa altura, Santos Simões publicava no jornal O Povo de Guimarães um texto em que reflectia sobre os “contorcionismos hepáticos” dos que presidiam aos destinos da coisa da cultura em Portugal para “evitar actos de consagração nacional” ao escritor da Casa do Alto, tal como acontecera, três anos antes, aquando do centenário do nascimento do seu companheiro Teixeira de Pascoais.

Aqui fica.


No cinquentenário da morte do autor de Húmus
Raul Brandão existiu?

por Santos Simões

Será que este país merece os seus escritores e artistas?
A pergunta não é uma provocação, mas a resposta (se a houver) com certeza que o será. Positiva ou negativa.
São tão raros os leitores de certos escritores que seria interessante investigar qual a responsabilidade da Escola nesta tragédia. Claro que me refiro aos escritores que escrevem ou escreveram e não aos copistas ou aos que estragam papel.
Nesta nossa região avultam dois nomes (dos nossos dias) cuja existência apenas se repercute nas cavas sonoridades das pazadas de terra que caem sobre os seus caixões (metafóricos). Refiro-me a Pascoaes e Brandão.
Teriam existido? Parece que sim, pois neste país os seus nomes vêm à colação de ruas e efemérides pautadas pelo nascimento e morte.
E urgente investigar se continuam sob a lousa pesada para tranquilizar os que preocupadamente os enchem de flores de plástico nas centenárias, cinquentenárias. etc. datas de passamento.
O que fizeram de contorcionismos hepáticos os doutos (i)responsáveis pela cultura no nosso (deles) país... ai o que eles fizeram para evitar actos de consagração nacional tanto na passagem do centenário de Brandão como de Pascoaes.
E agora cinquenta anos passaram sobre a morte de Brandão (do sr. Brandão da Casa do Alto).
Amou esta terra de Guimarães (à sua maneira) no duplo amor de transpor para a sua obra a “realidade inventada” dos seus ambientes (espaços habitados de fantasmas) e a “realidade real” dos que arrasta(ra)m gerações de sofrimento e aí estão eternizados nas suas páginas de dor.
Fui com amigos (velhos e queridos amigos) pôr uma flor da terra na morada de Brandão e Maria Angelina. Ali em cima, à Atouguia.
E fui a Lisboa, ao Campo Grande. sofrer a alegria de ver Brandão recordado em beleza e dignidade. A dois passos da cidade universitária, encontrei i Brandão desde Os Nefelibatas ate aos seus manuscritos (que na maior parte dos casos estão na letra dessa colaboradora paciente e inestimável da que foi sua companheira).
E senti-me acompanhado por Manuel Mendes. Com emoção.
E a Casa do Alto. E o gabinete de trabalho — ao rés do chão como o coração mandava.
E tudo. Tudo ali estava (menos os ares da Nespereira) como sempre desejei que também aqui estivesse nesta terra que ele aprendeu a amar através do amor por Maria Angelina.
Olho a capa do Catálogo precioso que a Biblioteca Nacional mandou fazer para registar a Exposição Biblio-Iconográfica. Reproduz a tela do pintor Raul Brandão sobre o vale de Gatão.
Enquanto o “foguete” galga quilómetros de regresso, a tela transformada em capa de resguardo recria uma solidão cor do mar onde Brandão e Pascoaes igualmente se esfumam.
Raul Brandão existiu?


O Povo de Guimarães, 18 de Dezembro de 1980

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