Salão de Chá da Praia de Polana, Lourenço Marques, em 1917. Fotografia pescada no blogue Restos de Colecção |
O arqueólogo Mário Cardoso fez carreira como
militar. Em 1913, com 24 anos, completou o curso da arma de infantaria na
antiga Escola de Guerra. No ano seguinte era alferes. Atingiria o ponto mais alto
da sua carreira militar em 1946 quando, já no posto de coronel, assumiu o
comando do Regimento de Infantaria 8, aquartelado em Braga. Pelo caminho,
prestou serviço no Regimento de Infantaria 20, em Guimarães, no Batalhão de
Caçadores 9, em Braga e no Batalhão de Caçadores 3, em Chaves. Durante a I
Guerra Mundial, esteve mobilizado nas campanhas de África, primeiro no Sul de Angola
e, depois, em Moçambique, onde esteve entre 1916 e 1918. É aí que o encontrámos
no início de Dezembro de 1916, provavelmente num período de licença, a gozar do
Sol de Verão do hemisfério Sul, e a contemplar, na praia de Polana, em Lourenço
Marques, o mar “dum tom azul muito escuro e diferente, o
céu onde flutuam gaivotas, planando em curvas serenas, inalteravelmente claro e
fluído”, os navios e a admirar as banhistas
deliciosas, a citar as “Chansons de Bilitis”. de Pierre Louÿs, e a exclamar que “
o horror da nudez e da carne é uma das mais acentuadas características dos
povos onde domina o fanatismo católico”, como conta numa crónica que foi
publicada no jornal Republicano, de
Guimarães, em 10 de Março de 1917, que aqui se partilha.
Na praia
Lourenço Marques
Dezembro, 5 — 1916
Dezembro! Enquanto na
minha terra o frio corta e o vento e as chuvas andam em correrias doidas, a
chorar e a rezar, pelas ruas apertadas da velha cidade—aqui, bem longe, onde estou
e donde escrevo, o calor é intenso e tomam-se banhos de mar! — Afinal, em
Lourenço Marques, durante todo o ano é tempo de praia, e o mar, em Agosto ou
Dezembro, tem sempre os banhistas do costume. Porém, um pouco por diferenças
climatéricas, um pouco por convenção estabeleceu-se que nestes meses, a que estarmos costumados a chamar de Inverno, aqui se chamem — de Verão. Considero-me pois no Verão neste último mês de 916. Considero-me também na Polana (ou Polana beach,
como querem os da comissão nacional de Turismo...); nesta terra portuguesa de
Lourenço Marques (ou nesta terra inglesa de Delagoa Bay...), às 5 da
tarde, num dia chic, da moda, em que na praia se reúne a fina-flor destas remotas paragens.
Ponho de parte aqueles que no “bar” tomam fleumaticamente o seu whisky
ou o seu tea e vou sentar-me na areia, debaixo dum toldo, com a espuma
branca a morrer à beira dos meus sapatos. Fumo, contemplo c considero.
Contemplo — o mar que é
dum tom azul muito escuro e diferente, o céu onde flutuam gaivotas, planando em
curvas serenas, inalteravelmente claro e fluído; contemplo — os grandes steamers que passam ao longe, errantes, sem pátria,
deixando atrás de si um rasto branco na água e um penacho de fumo estendido
sobre a linha do horizonte; e, finalmente contemplo e admiro as banhistas
deliciosas, num bando chilreante, a pequena distância, na minha frente. As
deliciosas banhistas! E nem porque as vejo quase nuas, com seus curtos maillots humedecidos e moldados ao corpo, eu tenho um pensamento indecoroso,
obsceno, carnal: olho a beleza como ela se me apresenta — com naturalidade. Admiro-a como arte que vive e palpita, e, como homem, desejo-a e evoco-a no que ela
tem de nobremente humano. Por isso a minha vista poisa serena nesses corpos esculturais e seminus a que a água dá brilhos e claridades de mármore, pernas a que o Poeta chamou “lisas colunas”, braços coleantes como serpentes, seios altos, rostos virginais emoldurados de madeixas de
oiro soltas da touca de cor intensa, fulgindo no azul do mar!
E vendo essas raparigas,
inglesas quase todas, que não se envergonham nem preocupam em patentear ao
olhar congestionado do portuguesinho curioso, indiscreto e malicioso, a beleza plástica do seu corpo — eu considero o escândalo que qualquer
destas ingénuas girls, de olhar claro e virgem, educadas nos princípios
domésticos da mais severa honestidade, considero o escândalo e a indignação que
o seu deshabillé elegante provocaria numa das nossas praias de Portugal, onde as mulheres têm o mau gosto de aparecerem no banho vestindo umas detestáveis e inestéticas
calças, dum pano grossíssimo, terminando em folhos até aos pés, e uma espécie
de casaco apertado no pescoço e com grandes mangas, receando deixar aparecer uma nesga do corpo, talvez
perfeito e belo como os mais belos! É certo que tudo provém da educação! A
mulher portuguesa, cheia de preconceitos e fanatismos religiosos, esconde o
corpo pela vergonha que provém duma falsa noção de pudor, porque no acto mais natural ela põe sempre
um pensamento mau, reservado, intencional. A mulher inglesa não se preocupa em
mostrar na praia a sua quase nudez e faz isto não por escandalosa coquetterie ou desbragamento de costumes, mas porque assim é mais cómodo e agradável para
tomar o seu banho e porque, na educação livre e sã que recebeu, nunca lhe
insinuaram que uma criatura nua fosse um espectáculo indecoroso ou aviltante.
Não resta dúvida que o
horror da nudez e da carne é uma das mais acentuadas características dos povos
onde domina o fanatismo católico. O próprio banho é um pecado! Pierre
Louÿs
nas suas magníficas “Chansons de Bilitis”, referindo-se
à
Grécia antiga, escreve: Peuple admirable, à qui la Beauté
nue pouvait apparaître sans exciter le rire ni la fausse honte!
Pudesse a mulher portuguesa livrar-se de tão falsos preconceitos que a tornam muitas vezes uma escrava ou uma
péssima esposa. Pudesse ela conduzir-se com essa naturalidade nas atitudes e
nos gestos e essa consciente elegância, honesta e desenvolta, que são o cunho mais
nobre da mulher inglesa e fazem dela, talvez, a melhor, a mais inteligente e
carinhosa educadora de crianças!
Mário Cardoso.
Republicano, Guimarães, 10 de Março de 1917
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