Raul Brandão |
Em 1901, no folheto “O Padre”, Raul Brandão atribui ao território um carácter
simbólico que se reparte por três espaços físicos e metafóricos: o campo, lugar
da “vida recolhida e severa pelo contacto com as coisas simples e imensas da
natureza”, que se despreza e despovoa; a vila, “onde se intriga”; a cidade, “onde
se goza”. A vila será o
cenário das suas duas obras ficcionais maiores do escritor de Nespereira, A Farsa e Húmus. Jacinto Prado Coelho descreveu a vila de Raul Brandão como “uma
abreviatura do mundo”, cujos habitantes representam “a humanidade inteira”.
A vila de Raul Brandão tem uma dimensão mais simbólica do que real, operando
como espaço metafórico, sendo assumida como uma paisagem imaginária, impossível
de identificar e de localizar no espaço geográfico do mundo concreto. No
entanto, da leitura da obra de Brandão, é possível perceber que há uma vila concreta
por trás da vila brandoniana, que foi delineada a partir da Guimarães que ele
conheceu e que, apesar do título de cidade que já ostentava, mantinha a
configuração de vila que sempre tivera.
Para afastar dúvidas na identificação da vila onde Raul Brandão montou o
palco da sua narrativa, bastam as primeiras linhas do primoroso quadro inicial
de A Farsa.
Quando lemos a descrição duma serra de encostas pedregosas e duma “praça
solitária”, cujo granito “revê água” e onde se ergue uma sé, com a sua torre, se
desenham arcarias, há “um Cristo aflitivo na abóbada de pedra sustentada por
quatro arcos ogivais” e se percute o “telingue-telingue eterno duma fonte”,
percebemos que Raul Brandão descreve um espaço familiar, povoado de elementos de
fácil identificação: a Penha, a praça da Oliveira, a igreja da Colegiada, com a
sua torre e a fonte que nela se encostava, e o monumento icónico e único que continuamos,
erradamente, a chamar de Padrão do Salado.
A Praça da Oliveira, em Guimarães, numa fotografia do início do séc. XX, vendo-se a igreja da Colegiada, com a torre, a fonte e, em primeiro plano, à direita, o Padrão. |
Alguém mais céptico ainda poderá argumentar que, no que fica
dito, não se encontra qualquer referência explícita a Guimarães. Avancemos
então até ao terceiro capítulo de A Farsa.
Aí, Raul Brandão transporta-nos até à noite de 5 de Dezembro, véspera de S.
Nicolau. Na vila, está “toda a populaça
na rua”, quando
Os tambores rufam sem interrupção – dir-se-ia que o planeta
estoira farto de sonho inútil – e do nada, iluminados a vermelho, brotam bamboleando e somem-se logo sem
aparência de realidade, o arco medievo e a mole rendilhada da Sé, para depois a novo
clarão ressurgirem só por momentos com
a abóbada, o Cristo, as colunatas e os fantásticos recortes de muralha e sombras que tomam corpo
e se amontoam nos vastos fundos onde
o clarão não penetra.
O único lugar do mundo onde, ano após ano, acontecia, e
continua a acontecer, a festividade que Raul Brandão descreve, é Guimarães. Trata-se
de um dos actos dos festejos dos estudantes vimaranenses, ao seu padroeiro, S.
Nicolau, cuja origem se perde na poeira dos séculos e que são conhecidos por Festas
Nicolinas. No programa das festividades, esse é, como o nota Raul Brandão, “o dia das posses, em que desde tempos imemoriais certas famílias
estão na obrigação, que a populaça não perdoa nem perde, de dar, uns castanhas, outros lenha, vinho, pão, uma árvore”.
No dia em que Brandão situa a sua narrativa, uma multidão
percorre “o burgo medievo com o castelo no alto e as muralhas desdentadas abrangendo as ruelas fétidas”, até que “estaca diante dum prédio emudecido
e escuro”, onde se cala a música e se faz silêncio, para se erguer uma voz que
chama:
– Cucúsio! Cucúsio! Cucúsio!...
O
chamamento emudece quando se abre um postigo “e uma voz comovida
responde afinal ao apelo”:
–
Pronto, meus senhores, cá está o Cucúsio!...
E logo assoma ao peitoril
do primeiro andar, alumiado pela chama vacilante da vela, um
monstruoso traseiro – como, desde tempos imemoriais, é obrigação daquela família, na véspera do santo, transmitida religiosamente de pais para filhos,
mostrá-lo à vila. A charanga ataca o hino, os tambores ao mesmo tempo
rufam, os urros estrugem…”
Mais uma vez, um Cucúsio, renovando uma
velha tradição da sua família, mostrava o traseiro à vila de Raul Brandão. Que
é, porque só pode ser, Guimarães.
*~*~*~*~*~*
A Farsa
(fragmentos)
[Cap. I]
–
Ai que ma levam! ai que ma levam!
Uma nuvem desce
da serra: arrastam-se os rolos pelas
encostas pedregosas e depois
as baforadas espessas
abafam de todo a vila. E noite, cerração compacta, névoa e
granito, formam um todo homogéneo para construírem um imenso e esfarrapado burgo de pedra e sonho. Pastas sobre pastas de nuvens álgidas,
que a noite transforma em crepes, amontoam-se
na escuridão. O granito revê água. E
sob a chuva ininterrupta, sob as cordas incessantes, a vila, envolta na treva
glacial, parece lavada em lágrimas...
–
Ai que ma levam!
É
o único grito que irrompe do escuro, lúgubre,
aflitivo, raspado. Depois o silêncio, a mudez concentrada da noite, a nuvem
negra coalhada sobre as ruínas da vila toda lavada em lágrimas. Só aquele grito ressoa
na praça solitária. A torre da Sé
deformou-se: o granito aliado à névoa de mistura com
a noite, abriram arcarias,
alongaram as portas e fizeram
dos restos da muralha antiga um tropel
caótico. É um amálgama de realidade
e pesadelo, trapos de nuvens e palácios desmedidos. A escuridão remexe. Não se sabe bem onde o sonho acaba e começa a matéria, se é uma cidade desconforme, sepulta em treva e lavada em lágrimas, ou meia dúzia de casebres e uma torre banal. Uma luzinha alumia um
Cristo aflitivo na abóbada de pedra sustentada por quatro arcos ogivais.
Mas a luz treme à ventania,
os arcos balouçam, a abóbada estremece, e, ao repelão do vento, grandes sombras esvoaçam, afundando-se no negrume. Há uma sufocação, um espanto, o terror de que a candeia se apague, e só fique o nada, a escuridão imensa e compacta e o grito
raspado – Lá a levam! lá a levam!... – É
como
a última claridade dum barco
de náufragos, tragado sem
remissão no redemoinho dum indefinido oceano polar. Adivinha-se a porta da igreja, uma golfada de tinta, e o telingue-telingue eterno duma fonte – o choro baixinho daquela
escuridão cerrada. A luz
estrebucha. Se o vento a sumisse levaria consigo o último sinal de vida. Ficava apenas
na noite infinita, impenetrável e
revolta, o grito de angústia:
–
Ai que ma levam!
~*~
[Cap. III]
Véspera de S. Nicolau
e toda a populaça na rua: uma
mixórdia
de grotesco e de caligens, de lama e gritos, de gestos confusos e de novelos pastosos que se acastelam lá no alto e barram o céu de horizonte a horizonte em pesadas
cortinas sobrepostas. Vem a cerração e a chuva pegada e tão miúda que
amolece o granito. Das ruas irrompem
sucessivos magotes, num clamor de inferno. Na noite ressoam gritos, urros, e clarões de
archotes revoluteiam tornando-a mais densa e profunda:
fisionomias e gestos surgem de repente como aparições
e logo se somem no pez. É uma mescla de negrume e fogo, de braços
que se agitam, de doida ventania e chuva cuspinhenta. Os tambores rufam
sem interrupção – dir-se-ia que o planeta estoira farto de sonho inútil – e do nada,
iluminados a vermelho, brotam
bamboleando e somem-se logo sem
aparência de realidade, o arco medievo e a mole rendilhada da Sé, para depois a novo
clarão ressurgirem só por momentos com
a abóbada, o Cristo, as colunatas e os fantásticos recortes de muralha e sombras que tomam corpo
e se amontoam nos vastos fundos onde
o clarão não penetra. Uma derrocada
em tropel, um jacto vivo de escuridão, um burgo
de sonho entrevisto que o vento leva consigo.
A turba avança, a praça trasborda:
há milhares de bocas que gritam ao
mesmo tempo. Aquele mar humano oscila, cresce,
clama e dispersa-se. Quando os
archotes se apagam, fica só a noite e o ruído; avivam-se os fogaréus e voltam a entrever-se as faces,
as bocarras abertas pelos risos estúpidos, rasgados de orelha a orelha.
–
S. Nicolau! S. Nicolau!...
É, na véspera da festa, o dia das posses, em
que desde tempos imemoriais certas
famílias estão na obrigação, que a populaça
não perdoa nem perde, de dar, uns castanhas,
outros lenha, vinho, pão, uma árvore.
Forma-se o cortejo. Já estrondeiam
os primeiros compassos da charanga, que desce a rua a passos marciais, archotes à frente. Um reboliço, mais berros, rufos desesperados, uivos, maltas que desaguam
de outras vielas recônditas e a multidão que oscila e se espraia até à muralha da igreja. Em
cima
a abobada negra do céu goteja lama
e as névoas arrastam-se lentas e esponjosas,
bambinela atrás de bambinela, pegam-se às paredes e deformam-nas, desagregam-se, suspendendo-se nas arestas
do granito como grandes
farrapos de luto. Os
uivos redobram. O mesmo pé de vento parece que fez redemoinhar a canalha e galopar no céu os
grossos novelos de fumo.
–
A câmara! aí vem a câmara!...
Pendões
balouçam-se, inclinam-se como
velas sacudidas pelo temporal, a que
se agarram meia dúzia de náufragos.
Logo mais alto, se ouvem
os clamores e a charanga
ataca as primeiras notas duma marcha
de guerra. Abre o cortejo o presidente do município, imponente e grave, com o pendão erguido;
seguem-no, solenes, o Pinheiro
Careca e outros tipos cerimoniosos, de
sobrecasaca e chapéu alto, sob a chuva incessante. Há um vaivém: a mó de gente empurra-se
e rodopia, mas organiza-se afinal o cortejo, depois de desordens
e protestos; das tabernas irrompem
os últimos matulas de
suíças; e o céu todo lama desce, desaba, imenso,
gelado e fétido, sobre a triste humanidade. Fúnebre,
lá consegue o Testa, de cara rapada e olho em alvo, abrir
a marcha com o pendão erguido ao vento.
O
Careca pega com sofreguidão a uma borla,
a charanga segue a passo cadenciado, e por último os magotes anónimos e confusos.
–
S. Nicolau! S. Nicolau!...
E tudo aquilo, mar de uivos, treva,
archotes, homens e fêmeas, urros
e clarões, jorro desordenado e
imenso, se engolfa nas ruas estreitas, numa interminável
e ensurdecedora bicha. Aqui e além o
fogaréu dum archote: dum lado a casaria, do outro a muralha antiga, compacta e bárbara, a que a noite dá dimensões monstruosas.
[...]
A canalha toma-o de repelão, traga-o entre as muralhas estreitas, esmagado naquele
oceano de cabeças. A chuva despega-se do céu, enlameia-o, pegajosa e fétida. A turba ulula aos arrancos.
Noite, lama, um inferno que
apanha e leva também outro
fantasma imenso, a velha que atravessa a vila sem ver nem
ouvir, perseguida por um
cortejo de ideias, de sonho, de exaspero
que a envolve e a funde na caligem. O burgo medievo com o castelo no alto e as muralhas desdentadas abrangendo as ruelas fétidas. De quando em
quando um buraco, um postigo, um pano intacto, que na sombra redobra de espessura, alumiado
pelos clarões dos archotes. Granito – granito sólido, bueiros de treva, mais
treva acastelada – e a multidão que
corre para um saque, desvairada, aos gritos, com os archotes em punho e as bocas
escancaradas... Escuridões longínquas
remexem. A névoa envolve e traspassa,
a chuva cai sobre a pedra e as
ruas envolvendo tudo de fumaceira e mistério. E à medida que vão passando aos urros,
o quadro desfila
a negro e vermelho, os prédios,
os becos, uma
praça esganada entre muralhas que se perdem no céu, bueiros que esguicham mais gente e que se afundam na
treva, coisas disformes que pertencem à noite e farrapos engrandecidos e misturados de névoa que transformam a vila num burgo
de pesadelo, quase alucinatório: são escadinhas que sobem até ao céu; é a quina duma torre toda
ensanguentada à luz dos fogaréus,
que bamboleia e recua para a treva; é um
novelo de casaria que estremece e avança, avivando-se pormenores que logo se perdem; é outra fiada de casebres que surgem
como
palácios monstruosos e lá no fundo uma calçada a
rever água que vai acabar num
poço subterrâneo; são nuvens esgarçadas que flutuam sobre o clarão dos archotes, tomadas duma
vida estranha. O burgo parece enorme, o milhar
de pessoas que se agita uma enorme multidão
desorientada e as nuvens crepes a rasto para o luto duma catástrofe universal.
Por
fim um jorro humano estaca diante
dum prédio emudecido e escuro, os clamores e a música cessam e a bicha, depois de ondular, atende ansiosa. Novelos sobre
novelos as nuvens continuam lá em cima
a sua desordenada e eterna correria sem fito.
O pendão camarário oscila, há um
baque, e, grave como quem
cumpre um rito, o Testa
destaca-se do grupo e avança limpando
da careca o suor das grandes solenidades. Diante do prédio, no silêncio e na
noite, três vezes chama:
–
Cucúsio! cucúsio! cucúsio!...
Nada.
Ninguém responde, e um frémito
percorre a turba que espera sempre, milhares de cabeças erguidas no ar, as
bocas abertas como peixes diante da
casa negra e cerrada. Para o fundo no negrume
outros, e mais outros envoltos na
escuridão, atendem também como quem
espera um milagre. E ouve-se no silêncio a chuva cair, miúda,
pegajosa, eterna. Pela fresta duma janela lá se escoa por fim
uma
ténue claridade – e ao fundo estremece, silenciosa e compacta,
a canalha comovida e atenta, até que,
avançando com imponência mais dois passos, o Testa, como quem invoca, implora e ordena, torna:
–
Cucúsio!...
Sente-se
abrir o postigo do prédio e uma voz
comovida responde afinal ao apelo:
–
Pronto, meus senhores, cá está o Cucúsio!...
E logo assoma ao peitoril
do primeiro andar, alumiado pela chama vacilante da vela, um
monstruoso traseiro – como, desde tempos imemoriais, é obrigação daquela família, na véspera do santo, transmitida religiosamente de pais para filhos,
mostrá-lo à vila. A charanga ataca o hino, os tambores ao mesmo tempo
rufam, os urros estrugem, o pendão oscila levado pelo Testa, no alto daquela onda, e o sr. Anacleto corre sem
ver nem ouvir, desorientado. Anda – e por fim, lá longe, a uma esquina, topa na escuridão com uma figura que mal se destaca da treva, como
um farrapo arrancado à própria noite.
Come
a ferrugem o aço, corrói a desgraça as criaturas.
Olha-o surpreso, como se pela
primeira vez na vida se lhe deparasse um ser humano. E pára atónito. Sem saber
porquê, sem razão plausível, o velho estaca... É uma rapariga, envelhecida pelos tratos: adivinha-se-lhe a palidez, a fome e as lágrimas. É na verdade um farrapo de sonho todo transido de dor. O sr. Anacleto detém-se atordoado diante da mão que rompe do escuro
e implora.
[...]
~*~
[Cap. VI]
Em
frente da vila cresce em degraus
a serra, grande, severa, descarnada
e pobre. São montes sobre montes erguidos com majestade até o céu, em
sucessivos recortes: primeiro atropelados e ásperos, com fragas
acasteladas nos picos, cariadas e negras;
depois violetas e diáfanos. É um
prodigioso cenário, uma convulsão
momentaneamente
petrificada que nos aproxima de Deus: gargantas aspérrimas e vales pacíficos: o caos e a mansidão: o infinito, o silêncio e uma humildade que
penetra e comove. Por cima da pedra o côncavo imutável do céu. Os montes vêm
do alto esfarrapados e nus, com
calhaus incrustados na pele rugosa. Mas a certa
altura a água borbulha e tudo se
transmuda: é a vida: é a emoção que
brota fio a fio dos peitos rígidos da montanha. E logo a doçura se alia à grandeza. Nos fundos
enxergam-se retalhos de milho, cabanas colmadas e escuras, póvoas isoladas no ermo.
[…]
E
a serra também. O colosso de terra, de penedia descarnada e abrupta, não dá só
piorno bravio – mas imensa e prodigiosa vida. De Inverno rasgam-na as águas, desaba a tempestade e o tumulto, dilacera-a o
raio, mas depois desse diálogo
travado entre a montanha e o Inverno,
a vida ressurge, a serra acorda. Anda ternura no ar, desponta
a primeira flor na raiz duma fraga.
Cheira a neve perfumada e ao hálito inocente dos montes.
3 Comentários
Obrigado, Dr. Amaro das Neves.