Raul Brandão e Guimarães (4)

Raul Brandão

Raul Brandão concluiu a escrita de A Farsa em Maio de 1903 e, a crer na data que inscreveu no início da obra, terá começado a escrever a sua obra-prima, Húmus, no dia 13 de Novembro de 1915. Entre essas duas datas, passaram doze anos e meio sem que, aparentemente, o mestre de Nespereira tenha escrito prosa ficcional. É certo que, em 1906, publicou Os Pobres, mas esse livro já estava escrito desde 1900, tendo ficado três anos a aguardar a carta-prefácio de Guerra Junqueiro e outros tantos à espera de entrar no prelo. Nos doze anos que transcorreram entre o momento em que Brandão escreveu a última frase de A Farsa (É uma água frígida e límpida que apetece sempre beber) e aquele em que começou a compor Húmus, o escritor não deixou de escrever: dedicou-se ao jornalismo e à escrita da história, centrada nos anos conturbados que antecederam a implantação do liberalismo em Portugal, em Agosto de 1820, tendo publicado El-Rei Junot, em 1912, A Conspiração de 1817, em 1914, e O Cerco do Porto, contado por uma testemunha, o Coronel Owen, que prefaciou, anotou e publicou em 1915.

Com Húmus, Raul Brandão quebra um longo interregno e regressa à escrita de ficção, dando continuidade a uma obra que inaugurara com a História dum Palhaço e onde já se inscreviam Os Pobres A Farsa. Com ele, regressa também à vila que já conhecia, e que agora servirá de palco às maquinações da mesquinha, perversa e hipócrita Candidinha. A afirmação de que vila de A Farsa é a mesma de Húmus é consensual entre os especialistas que se têm dedicado ao estudo da obra de Raul Brandão.

Húmus é o melhor livro que Raul Brandão escreveu. Assim o consideram críticos e historiadores da literatura, assim o considerava o próprio Raul Brandão. Trata-se de uma obra literária singular, tanto pela mensagem que transmite, como pelo modo como corta com as convenções e com os preconceitos formais até aí em uso na escrita romanesca  e proclama a sua independência em relação aos processos tradicionais, introduzindo um método de escrita que se liberta das peias de um esquema preconcebido, dando livre curso à imaginação e à inspiração imediata e transportando a sua prosa para territórios que se supunham exclusivos da poesia. É uma das obras maiores da literatura em língua portuguesa do século XX. A narrativa situa-se numa vila onde decorre um drama cujas personagens que são reflexos das angústias, dos sentimentos e do pensamento do próprio autor. Uma povoação fantasmática que reproduz a vila de A Farsa, réplica da Guimarães que Raul Brandão bem conhecia, cuja identidade se desvenda logo nas linhas iniciais, datadas de 13 de Novembro:

Uma vila encardida – ruas desertas – pátios de lajes soerguidas pelo único esforço da erva – o castelo – restos intactos de muralha que não têm serventia: uma escada encravada nos alvéolos das paredes não conduz a nenhures. Só uma figueira brava conseguiu meter-se nos interstícios das pedras e delas extrai suco e vida. A torre – a porta da Sé com os santos nos seus nichos – a praça com árvores raquíticas e um coreto de zinco. Sobre isto um tom denegrido e uniforme: a humidade entranhou-se na pedra, o sol entranhou-se na humidade.

Uma vila com pátios lajeados; um castelo; restos intactos de muralha sem serventia; a Sé, a que mais adiante chamará de Colegiada, com uma porta com santos nos seus nichos; uma praça com árvores raquíticas e um coreto de zinco, que o escritor não necessita de nomear para nós sabermos que é o Toural.

Um pouco mais adiante, sob a data de 20 de Novembro, lemos:

Não se passa nada! não se passa nada! No Verão o calor sufoca, de Inverno a mesma nuvem impregna o granito, e apega-se, amolece, dissolve pilares das janelas, casebres e a oliveira da praça, só tronco e duas folhinhas cinzentas. Em volta um círculo de montanhas, descarnadas e atentas, espera a tragédia – e as montanhas não desistem. De quando em quando, na solidão que à noite redobra, caem do alto da Sé as badaladas, uma a uma, pausa a pausa.

E percebemos que “a oliveira da praça, só tronco e duas folhinhas cinzentas”, é a árvore que dá nome à Praça Maior de Guimarães, onde antigamente se concentravam o poder político (Casa da Câmara), o poder judicial (Casa das Audiências) e o poder religioso (Colegiada) e que as montanhas em volta são os montes que cercam o vale onde Guimarães está implantada, entre os quais sobressai a serra, então descarnada, que é a Penha.

Datado de 18 de Dezembro, encontrámos o seguinte trecho:

Os padres clamam num coro desesperado: – Acabou o inferno! acabou tudo! Descompõem-se na sala da colegiada que deita para o passado – o claustro com um pé de oliveira, e dois túmulos encravados na parede, cenografia para o Hamlet – ser ou não ser eis a questão... Cheiram a urina e a ranço. A religião sem inferno está perdida.

A oliveira do claustro da Colegiada de Guimarães. À direita, os dois túmulos dos morgados de Sezim.

A colegiada onde se proclama o fim do inferno é a que conhecemos. Era lá que estava, e ainda está, uma oliveira velha de muitos séculos. Assim como os dois túmulos a que Brandão alude — duas arcas tumulares cravadas na fachada lateral voltada a Sul da igreja, debaixo de arcossólios, que acolheram os restos mortais do morgado de Sezim e da sua mulher. Continuam no mesmo sítio e, para os ver, basta entrar no Museu de Alberto Sampaio.

A vila de Húmus é feita de granito, tem uma montanha descarnada a vigiá-la,  uma praça com uma oliveira e outra com um coreto de zinco e árvores raquíticas, um castelo e restos de muralha, com ou sem ameias, e uma igreja com um portal encimado por nichos com estátuas de santos talhadas em pedra que se esboroa e onde se encosta um claustro com uma oliveira e dois túmulos de pedra encravados na parede. A vila de Húmus, como a de A Farsa, é Guimarães.

E o luar intolerável, o luar indiferente, derrete-se sobre as ameias, sobre a catedral, sobre os santos imóveis nos seus nichos.


*~*~*~*~*~*

Húmus
(fragmentos)

13 de Novembro. 

Ouço sempre o mesmo ruído de morte que devagar rói e persiste...

Uma vila encardida – ruas desertas – pátios de lajes soerguidas pelo único esforço da erva – o castelo – restos intactos de muralha que não têm serventia: uma escada encravada nos alvéolos das paredes não conduz a nenhures. Só uma figueira brava conseguiu meter-se nos interstícios das pedras e delas extrai suco e vida. A torre – a porta da Sé com os santos nos seus nichos – a praça com árvores raquíticas e um coreto de zinco. Sobre isto um tom denegrido e uniforme: a humidade entranhou-se na pedra, o sol entranhou-se na humidade. Nos corredores as aranhas tecem imutáveis teias de silêncio e tédio e uma cinza invisível, manias, regras, hábitos, vai lentamente soterrando tudo. Vi não sei onde, num jardim abandonado – Inverno e folhas secas – entre buxos do tamanho de árvores, estátuas de granito a que o tempo corroera as feições. Puíra-as e a expressão não era grotesca, mas dolorosa. Sentia-se um esforço enorme para se arrancarem à pedra. Na realidade isto é como Pompeia um vasto sepulcro: aqui se enterraram todos os nossos sonhos... Sob estas capas de vulgaridade há talvez sonho e dor que a ninharia e o hábito não deixam vir à superfície. Afigura-se-me que estes seres estão encerrados num invólucro de pedra: talvez queiram falar, talvez não possam falar.

Silêncio. Ponho o ouvido à escuta e ouço sempre o trabalho persistente do caruncho que rói há séculos na madeira e nas almas.
~*~

20 de Novembro
[…]
A vila é um simulacro. Melhor: a vida é um simulacro.
[…]
Reparo melhor na vila... Alvenaria e castanho, construções para séculos. Ruas lajeadas, recantos onde nunca entrou o sol. Paredes mestras. Silêncio e humidade até à medula, gestos lentos, hábitos regrados. Uma rua desce até à igreja de cantaria lavrada. Um prédio enorme avança sobre a ruela onde os passos ecoam. Cresce aqui uma vegetação especial de sepulcro, e a sombra absorvida pelas muralhas da Sé exala-se em bafo passado um século. Os alicerces são temerosos, as traves de uma casa davam para a construção de um bairro. E tudo isto se entranhou de salitre, de interesse e de ódio. Em tudo isto há uma mescla de inutilidade, de fé e de sonho. Tudo isto esta cimentado para séculos. Cada barrote foi pregado com um destino, cada bloco metido na terra para se lhe erguer em cima não uma parede, mas uma ideia, uma vida, uma alma – tudo isto tem uma camada de bolor e se impregnou de desespero. Até os sepulcros foram construídos para a eternidade. A pedra depois de talhada é uma expressão. Entro na catedral. Silêncio e um cheirinho a floresta apodrecida. As lajes estão gastas de um lado pelos passos dos vivos, do outro pelo contacto dos mortos. Tudo aqui gira em torno da mesma ideia. A pedra esboroa-se, mas eu contemplo-a viva, com um povo de estátuas em cima, com um povo de mortos em baixo. Nos alicerces uma geração, outra geração, todos apodrecendo juntos na mesma terra misturada e revolvida. A parte exterior é maravilhosa, a parte subterrânea é mais maravilhosa ainda. É a única raiz que se conserva intacta.

Aqui não andam só os vivos – andam também os mortos. A vila é povoada pelos que se agitam numa existência transitória e baça, e pelos outros que se impõem como se estivessem vivos. Tudo está ligado e confundido. Sobre as casas há outra edificação, e uma trave ideal que o caruncho rói une todas as construções vulgares. Debalde todos os dias repelimos os mortos – todos os dias os mortos se misturam à nossa vida. E não nos largam
[…]

Em certas ocasiões, se as palavras e a insignificância desaparecessem da vida, só ficava de pé o espanto.

Só a insignificância nos permite viver. Sem ela já o doido que em nós prega, tinha tomado conta do mundo. A insignificância comprime uma força desabalada.

Para não ver, para não ouvir, é que nos curvamos sobre a mesa de jogo. Para te não ouvires a ti mesmo, para não veres o que te gasta a todos os minutos e a todas as horas, usura imensa que não sentes e que te vai levar para o escantilhão sôfrego, que te vai mergulhar no silêncio profundo. Usura de todos os instantes. Gasta-nos, desgasta-nos. E todos os dias acordamos mais velhos, todos os dias acordamos mais inúteis. Todos os dias acordamos com mais fel. E todos os dias com mesuras, sem gritos de terror, nos curvamos sobre esta mesa de jogo, não vendo, fingindo que não existe, o espanto que está ao nosso lado, e o espanto pior que trazemos connosco. Chama-se a isto o quotidiano. Isto não tem importância nenhuma. Com isto enchemos a vicia até chegar a morte. Esta mesa de jogo é a nossa existência vulgar, a vida de todos os dias, com o galope da outra vida ao lado. Não se passa nada! não se passa nada! No Verão o calor sufoca, de Inverno a mesma nuvem impregna o granito, e apega-se, amolece, dissolve pilares das janelas, casebres e a oliveira da praça, só tronco e duas folhinhas cinzentas. Em volta um círculo de montanhas, descarnadas e atentas, espera a tragédia – e as montanhas não desistem. De quando em quando, na solidão que à noite redobra, caem do alto da Sé as badaladas, uma a uma, pausa a pausa. O som tem um peso desconforme.

Estamos aqui todos à espera da morte! estamos aqui todos à espera da morte!

~*~

7 de Dezembro

A noite é de aparato. A lua de coral sobe por trás da montanha em osso, e depois na chanfradura das ameias.
~*~

18 de Dezembro

Toda a gente dá a mesma ferocidade, ódio instinto. Espremidos deitam as mesmas paixões. Uns ignoravam-se. Outros usavam a vida em manias. Outros gastavam-na em grotesco. Outros habituavam-se. A paciência era pegajosa. A paciência tinha uma cor especial, verde desbotado, que malferia a vista, e um filho, a cobiça, tal qual como a D. Restituta, que encrespa o pêlo e se põe de pé com o guarda-chuva em riste. Cada ser me perturba como se contivesse em si o céu e o inferno. Bem sei que a fórmula não é inútil: ao contrário a máscara é indispensável e é por ela que nos julgam. Mas, apesar de criarmos o mesmo bolor e de nos sepultarmos ao mesmo tempo com certa comodidade sob alguns palmos de terra, há qualquer coisa que remexe e que faz parte integrante da vida. Até o escuro se eriça – até a grande sombra se deforma. – Muita gente na vida só conta com a morte. A D. Desidéria desata aos ais. E é com secreta satisfação que vejo esfarelar-se este edifício tão bem construído sobre bases, que pareciam inabaláveis, do interesse, da hipocrisia e das conveniências... Impelidos por uma mola dão todos um passo em frente, e há três dias que os padres se descompõem na colegiada sem se chegarem a entender: – Lá vai o inferno! lá vai o inferno! E, efectivamente, de um instante para o outro, lá vai o inferno que tanto custou a fazer, e outras sombras temerosas reduzidas a cisco. Lá vai o cenário admirável e monstruoso, todas as regras, todos os papéis pintados, que atravancavam o mundo, e eram pelo menos metade da nossa existência. O que tinha uma importância extrema passou a não ter importância nenhuma; o que parecia indispensável à vida, e sem o que se não dava um passo na vida, reduziu-se num minuto a zero. E outras coisas insignificantes assumiram proporções enormes... Os padres clamam num coro desesperado: – Acabou o inferno! acabou tudo! Descompõem-se na sala da colegiada que deita para o passado – o claustro com um pé de oliveira, e dois túmulos encravados na parede, cenografia para o Hamlet – ser ou não ser eis a questão... Cheiram a urina e a ranço. A religião sem inferno está perdida. – Mas lá por o homem ter suprimido a morte, não deixa de haver inferno – observa o estúpido cónego Fazenda. – Isso está claro que não deixa, obrigado pela observação, mas é um inferno tão distante que não mete medo a ninguém. – Protesto! – Lá vai o inferno! acabou o inferno!

Lá vai também o céu, mas o céu não faz falta nenhuma.

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13 de Fevereiro

E o luar intolerável, o luar indiferente, derrete-se sobre as ameias, sobre a catedral, sobre os santos imóveis nos seus nichos.

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25 de Dezembro

Nas avenidas de légua erram alguns cães famintos, e os vastos coliseus, os hotéis para estrangeiros, desfazem-se em cisco. Os quatro mil habitantes da pequena vila, perdem-se entre o cenário, a lona, as pastas que esfarelam, o estuque que desaba, o cimento que esboroa. Por uma parede arrombada, vê-se o papel da sala de visitas de Adélia, as cadeiras de palhinha, dois castiçais de prata, uma mesa derrubada a que falta a base, e, entre dois tabiques, a prima Angélica curvada sobre o mesmo pé de meia, que já tem três léguas de comprido. Da catedral, de velho granito, existe a porta, e da muralha antiga um único pano se conserva intacto, sem ameias, como uma fera a que tivessem partido os dentes... Mas a vida persiste, a vida insiste. Já os hábitos tornaram à supuração. Na botica deserta dois homens recomeçaram uma partida de gamão. Abriu hoje a repartição de fazenda – e da mesa de jogo, com o candeeiro em cima, de novo se aproximam, pé ante pé, estas velhas figuras puídas, embrulhadas nos xailes sem pêlo...


Estamos aqui todos à espera da morte! Estamos aqui todos à espera da morte!

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