Abílio Capela (pormenor de fotografia roubada ao Torcato Ribeiro) |
Já esqueci o nome do poeta que dizia que nunca perguntava por
quem se dobravam os sinos, porque sabia que era por ele que dobravam. Eu sei
que é um lugar comum, mas não é por o ser que deixa de ser verdade: quando nos
parte alguém, há sempre uma parte de nós que se parte.
Também não me lembro ao certo do momento em que conheci o Capela,
mas sei que aqueles eram dias festivos em que nasceram amizades improváveis que
ficaram para a vida. Eu frequentava o quinto ano do Liceu, o Capela era um
jovem advogado. Viviam-se os tempos da construção da utopia que nasceu em
Abril e que haveria de morrer mais adiante, num Novembro qualquer.
O Capela era, bem o sabemos, um homem bom e de bem, generoso,
fraterno e solidário, que dedicou muita da sua vida às causas de gente humilde.
Era o advogado do sindicato e foi militante político, deputado da Assembleia
Municipal, director do jornal O Povo de
Guimarães. Frequentava um largo círculo de amigos que começava o dia no
Café Toural e terminava as noites entre o Café Oriental e o Vira Bar. Com
alguns deles partilhava o passatempo da pesca, mas confesso que não me ficaram
na memória notícias de pescarias assinaláveis. Dele recordo a constância da
expressão afável, com um toque ironia, quase sarcasmo.
O Capela era um tímido com um imenso coração.
Estava sempre disponível para os amigos. Recordo, por exemplo,
o dia em que, numa altercação de trânsito em pleno Toural, um condutor irritadiço
esguichou um spray de gás pimenta para o interior do carro onde eu seguia. Foi
detido e acabamos na esquadra da PSP, então na rua João Lopes de Faria. O Capela
foi lá ter. Depressa percebeu que o homem se passara dos carretos porque era emigrante
e estava na sua hora de regressar a França, mas antes tinha que tratar de
assuntos no banco e nesse dia os bancários tinham estado em greve. Quisemos
retirar a queixa, mas disseram-nos que não seria possível, por se tratar de
agressão com arma proibida. E lá
ficamos os três, agressor, agredido e advogado, em conversa amena à porta do
tribunal, falando de banalidades e de outras miudezas, como se fôssemos velhos
conhecidos, à espera que o tribunal decidisse autorizar o emigrante a voltar para
França enquanto o processo seguiria os seus trâmites. Era assim o Capela,
sempre preocupado em perceber o outro, mesmo quando o outro estava do outro
lado.
Um dia, há muitos dias (tantos que já passaram muitos anos
desde então), avisaram-nos que nos devíamos preparar para a sua partida: o
coração do Capela parara. Porém, inesperadamente, depois de uma longa agonia, voltou
a bater. O Capela agarrava-se à vida, mas preveniram-nos que ficaria com sequelas
cuja dimensão a medicina não era capaz de prever, mas que seriam sérias. Com o
tempo, recuperou muito, regressando à vida quase como uma sombra do que antes
fora. De vez em quando, encontrava-o a passear pelas ruas da cidade. Falava
pouco, mas aquele sorriso não deixava dúvidas: o Capela continuava lá. Inteiro,
apesar da evidência da fragilidade física crescente.
A sua partida não nos surpreendeu. Há muito que estávamos
avisados. Ultimamente já tínhamos percebido que estava a desistir.
Como Rabelais, que também sorria assim, o Capela saiu de cena,
em busca de um grande talvez.
Dele não quis guardar na memória a cerimónia com que foi
devolvido à terra dentro de quatro tábuas. O Capela não era de cerimónias. Do Capela, basta-me a recordação de um sorriso, que hei-de lembrar
com alegria e uma saudade imensa sempre que estiver à frente de uma costeleta panada acompanhada por arroz
de feijão a fugir pelo prato fora.
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