Campeia o velho alcáçar sobre
uma colina pouco elevada ao Norte de Guimarães e no ponto em que termina a
cidade. Para o lado desta, desce o terreno com suave declive e todo assombrado
de choupos, castanheiros, oliveiras e anosos carvalhos, toldando com sua
espessa e frondosa copa os caminhos que serpeiam pela colina. No lado oposto, é
o pequeno outeiro formado de grandes penedos, dispostos de modo como se a natureza
quisesse fabricar com eles aprumada muralha. Prolonga-se com os penedos
comprida fileira de castanheiros, tão altos e esguios que acompanham em toda a
altura a parede do antigo paço; e desde a raiz dos rochedos trepam heras, que
vão subindo e vestindo de manto de verdura o velho monumento, até lhe
engrinaldarem as janelas, brincando daí e prendendo-se à ramagem dos
castanheiros, que ora as beija docemente impelida da brisa, ora as açoita
agitada da tempestade.
Na vasta colaboração que o
historiador e arqueólogo Inácio de Vilhena Barbosa (1811-1890) publicou nas
revistas O Panorama, Ilustração Luso-Brasileira, Arquivo Pitoresco e O Ocidente, incluem-se diversos textos históricos e reportagens que
tratam de Guimarães e dos seus monumentos, alguns dos quais já aqui publicados.
O delicioso fragmento que transcrevemos acima foi retirado do texto de 1863,
publicado no Arquivo Pitoresco, tendo como ilustração a gravura que também aqui
se reproduz.
Valem bem a pena os minutos que se ganham com a sua leitura.
O
Castelo de Guimarães
Numa extremidade de Guimarães,
entre o Norte e Leste, estendem-se por terreno acidentado umas fileiras de
casinhas, tão velhas e humildes, que mais parecem uma pobre aldeia do sertão do
que o bairro de uma cidade. Todavia, se a riqueza e as artes lhe recusaram
absolutamente todos os títulos que podem atrair a atenção do viajante,
concederam-lhe os séculos por nobreza brasão de alta antiguidade.
Esse bairro é a vila antiga ou,
diremos melhor, a povoação que precedeu a vila hoje cidade de Guimarães. Refere
o autor da “Corografia Portuguesa”, que tivera por fundadores os galo-celtas,
500 anos antes do nascimento de Jesus Cristo. Preferimos, contudo, dizer que a
sua origem está escondida entre os mais recônditos mistérios do tempo.
Se as conjecturas em tais casos
são boas, o que pode supor-se mais próximo da verdade é que serviu de núcleo à
povoação uma torre ameiada, também de fundação duvidosa, mas que há motivos
para a crer obra dos romanos.
Passados muitos anos, governava
parte do Minho e da Galiza, em nome dos reis de Leão, Hermenegildo, conde de Tui
e do Porto, casado com D. Mumadona, tia de D. Ramiro II de Leão.
Faleceu o conde deixando a condessa
senhora de muitos bens e de avultados rendimentos.
Logo que enviuvou, resolveu D.
Mumadona trocar os prazeres e vaidades do mundo pelas asperezas e penitências
do claustro; e, para este fim, edificou um mosteiro em uma quinta que possuía
pouco distante da torre e da pequena povoação acima referidas (ano de 927).
Já noutro lugar tratámos do
mosteiro, que ao princípio foi duplex, isto é, de frades e freiras, vivendo em
edifícios separados, e só a igreja em comum; e que depois foi unicamente de
monges beneditinos, sendo constituído ao diante o seu templo em colegiada com
dignidades e cónegos, consagrada a Nossa Senhora da Oliveira, e o mosteiro convertido
em paços do dom prior.[1]
Achava-se a condessa recolhida
com as suas freiras no mosteiro de Santa Maria, quando veio uma triste nova
lançar as servas do Senhor em sustos e cruéis ansiedades. Os moiros,
capitaneados por um chefe audacioso, chamado El Mansur, faziam repetidas
correrias por terras cristãs, espalhando na passagem o terror, a assolação e a
morte.
Era, pois, urgente
prevenirem-se contra qualquer invasão dos infiéis, tanto mais possível, e para
temer, quanto era certo que a fama apregoava por toda a parte a munificência
com que a fundadora dotara o templo de Santa Maria com mui preciosos vasos
sagrados e riquíssimas alfaias.
Porém, o mosteiro era
indefensável. Construído simplesmente para casa de oração, nada mostrava que se
parecesse com a mais mínima feição de fortaleza, como se via em algumas
edificações deste género, que a necessidade dos tempos fizera de construção
meio religiosa, meio guerreira. Além disso, estava em sítio quase ermo, apenas
povoado da pobreza que se ia acercando daquelas santas paredes para se valer da
protecção caridosa da condessa.
Determinou por tanto D. Mumadona
fundar um castelo para defensa daqueles povos e do mosteiro e, em casos
extremos, para servir aos cristãos de último refúgio.
A torre antiga, que se erguia
nas vizinhanças do mosteiro, alta, de excelente construção, e com sua coroa de
ameias, era de per si um valioso contingente para a obra que se projectava,
além de ser a sua posição muito apropriada para assento de uma boa fortaleza,
quer pela elevação do terreno, quer pelas rochas que aí se lhe ofereciam para
base.
Começada a fabrica com o fervor
de quem tinha abundância de meios e grande necessidade dela, não tardou muito a
concluir-se, ficando um castelo fortíssimo, não pela grandeza da área que
ocupava, mas sim pelas grossas muralhas de cantaria e pelas torres ameiadas,
que a espaços as guarneciam. A torre antiga ficou solitária no centro da fortaleza
como torre de menagem.
Volveram-se os anos, passou-se
quase um século, e Portugal foi dado com título de condado por D. Afonso VI,
rei de Castela e Leão, a D. Henrique de Borgonha, em dote de sua mulher, a
rainha D. Teresa, filha daquele monarca.
A este tempo, as humildes
choupanas que tinham procurado abrigo à sombra do mosteiro da condessa
Mumadona, haviam-se transformado em casas mais bem construídas, e estas tanto
se tinham multiplicado que já formavam uma grande povoação com o nome de
Guimarães. Foi aí que o conde D. Henrique e D. Teresa vieram estabelecer a sua
corte, preferindo-a a Braga, cidade antiquíssima, provavelmente em atenção à
segurança que lhes oferecia o castelo de D. Mumadona.
Procederam a alguns trabalhos
de restauração da fortaleza e edificaram nela uns paços para sua residência.
Viveram nestes paços a maior
parte do tempo, durante a constância do matrimónio. Neles nasceu e foi criado
D. Afonso Henriques.
Depois da morte do conde D.
Henrique, acontecida em 1114, continuou a ser Guimarães sede da corte de
Portugal durante o governo da rainha D. Teresa, e no de seu filho, o infante D.
Afonso Henriques, até este príncipe a transferir para Coimbra, onde o esperavam
as honras da realeza.
Durante este período, foi o
castelo de Guimarães teatro de importantes sucessos.
Primeiramente, os amores da
rainha D. Teresa com o conde Fernando Peres de Trava, que alienaram da mãe o
amor e obediência do filho, e da soberana o respeito e lealdade dos vassalos,
acabando por expulsá-la do governo e do país. Depois o cerco do castelo pelas
tropas leonesas, comandadas pelo próprio rei D. Afonso VII, e o acto de
dedicação com que o fiel aio de Afonso Henriques, Egas Moniz, salvou o príncipe
e a fortaleza de caírem em poder dos sitiadores, fazendo com que estes
levantassem o cerco (1127). Mais tarde, foi uma cena de rebeldia que aí se
passou, durante as funestas discórdias do infante D. Afonso com el-rei D. Dinis,
seu pai, vindo o infante com os mais vassalos rebelados pôr em estreito assédio
o castelo de Guimarães, que Mem Rodrigues de Vasconcelos corajosamente defendeu
e conservou por el-rei (1323). Daí a quarenta e seis anos, na guerra que
rebentou entre el-rei D. Fernando de Portugal e Henrique II de Castela,
sustentou aquela fortaleza novo cerco, ficando vitoriosa em todos os assaltos
que lhe deram os castelhanos, capitaneados por Henrique II em pessoa.
A invenção da pólvora, mudando
inteiramente a táctica da guerra e fazendo tomar às fortalezas novas formas, pôs
termo aos fastos militares dos antigos castelos, que pela maior parte foram
abandonados e expostos à acção destruidora do tempo e às devastações dos
homens.
O castelo de Guimarães,
felizmente, não foi condenado a esse abandono assolador. É um dos mais bem
conservados que há no reino.
Depois de despojado das honras
militares, ficou servindo por largos anos de cadeia pública da vizinha vila; e,
quando o dispensaram deste serviço, deixaram-lhe um guarda que, residindo nele
e tendo cuidado em fechar a porta de noite, vela, até certo ponto, pela sua
conservação.
Compõe-se o castelo de sete
torres quadrangulares, unidas por altas muralhas ameiadas, e da torre de
menagem, muito mais elevada do que as outras. Duas das sete torres defendem a
porta principal, que está voltada para o Sul, e lhe apertam a passagem. Outras
duas guardam a porta que dava saída para o campo extramuros e que olha para o Norte.
As três que restam guarnecem as muralhas entre as duas portas, uma do lado de Oeste
e duas da parte de Leste.
Interiormente, encosta-se à
muralha uma escada de pedra que conduz ao adarve, passeio que vai correndo em
volta dos muros, junto às ameias, com bastante largueza para os soldados daí
defenderem o castelo.
As torres têm por coroas
terrados orlados de ameias, para os quais se sobe por escadas de pedra que,
principiando nos adarves, vão encostadas às paredes exteriores das mesmas
torres.
O espaço que as muralhas deixam
livre no interior da fortaleza tem de comprimento obra de 52 metros e 36 de
largura, pouco mais ou menos.
No centro exactamente ergue-se
a grande torre de menagem, também quadrangular e com sua coroa de ameias. Tem a
porta de entrada no mesmo nível do adarve da muralha fronteira, o qual servia
de apoio à sua ponte levadiça. Dali para baixo não se vêem na torre portas nem
frestas; e dali para cima era dividida em três pavimentos, apenas alumiados
pela escassa luz que a furto se coa pelas estreitas e pequenas frestas abertas
nas quatro paredes. Ao presente, já não conserva a ponte levadiça, nem a
distribuição de pavimentos, mas deixa ver o lugar deles, assim como sobre a
porta se divisam as aberturas a modo de óculos, por onde corriam as cadeias de
ferro que suspendiam e baixavam a ponte.
Dizem os nossos antiquários que
à entrada desta torre se via gravada em uma pedra a seguinte inscrição romana: via maris, caminho do mar; do que alguns
dos mesmos escritores pretenderam tirar a origem do nome Guimarães, por
corrupção de Vimaranes. Outros,
porém, querem, com melhor fundamento, que esse nome proveio da quinta de Vimaranes, onde a condessa D.
Mumadona fundou o seu mosteiro de Santa Maria. O nome da quinta consta de escrituras
autênticas. Quanto à inscrição, se acaso existiu, gastou-a o tempo. Tendo nós
visitado muitas vezes este castelo não achámos vestígio algum dela.
Entre a torre de menagem e a
muralha da cerca do lado de Oeste avultam as ruínas do paço do conde D.
Henrique e da rainha D. Teresa. Ocupava este paço todo o lado de Oeste do
castelo, desde a torre vizinha das duas que defendem a porta principal da
fortaleza, até às duas torres que estão de guarda à porta do Norte. As paredes
do palácio da parte de Oeste e Norte apoiam-se sobre as muralhas do castelo e
conservam-se inteiras, mostrando perfeitamente a divisão das casas. As outras
paredes do lado de Leste e Sul tinham por assento o mesmo solo em que se
levanta a fortaleza, porém ambas estão quase de todo aluídas.
Constava o paço de dois andares
mui baixos e acanhados. As janelas da frente de Oeste, as quais existem em bom
estado, são pequenas, quadradas e divididas ao meio por um pilar sextavado.
Todas têm assentos de pedra. A verga é direita como a de todas as portas e
frestas do castelo, no que acharam os estudiosos uma profícua lição sobre a arquitectura
na época da condessa Mumadona e do conde D. Henrique, isto é, nos séculos X e
XI.
A maior sala desta parte do
edifício tem duas janelas, colocadas nas extremidades, deixando entre si um
comprido vão de parede e tendo, no centro de outra parede, uma grande e tosca
chaminé. Às mais casas, que não eram muitas, apesar de terem as paredes
demolidas, deixam bem ajuizar da sua pequenez. As duas torres com que o paço
confinava também serviam de aposentos régios, mas cada uma apenas contém um
quarto mui limitado. Actualmente, entra-se para o paço pela torre do Norte, depois
de se ter subido grosseira escada de pedra, encostada à muralha desse mesmo
lado, como as outras de que acima falámos.
Entre a torre de menagem e o
lanço de muro de Leste ficavam a ermida, uma casa onde talvez se aquartelava a
tropa, e a prisão. Esta última é um apertado cubículo, com uma janela a pouca
altura do chão, de forma quadrada e defendida com grossos varões de ferro. No
meio da casa, levanta-se da terra metade de um grande rochedo perfeitamente esférico,
ao qual está presa uma formidável corrente de ferro.
Campeia o velho alcáçar sobre
uma colina pouco elevada ao Norte de Guimarães e no ponto em que termina a
cidade. Para o lado desta, desce o terreno com suave declive e todo assombrado
de choupos, castanheiros, oliveiras e anosos carvalhos, toldando com sua
espessa e frondosa copa os caminhos que serpeiam pela colina. No lado oposto, é
o pequeno outeiro formado de grandes penedos, dispostos de modo como se a natureza
quisesse fabricar com eles aprumada muralha. Prolonga-se com os penedos
comprida fileira de castanheiros, tão altos e esguios que acompanham em toda a
altura a parede do antigo paço; e desde a raiz dos rochedos trepam heras, que
vão subindo e vestindo de manto de verdura o velho monumento, até lhe
engrinaldarem as janelas, brincando daí e prendendo-se à ramagem dos
castanheiros, que ora as beija docemente impelida da brisa, ora as açoita
agitada da tempestade.
É belo e grandioso o aspecto da
fortaleza, erguendo entre maciços de verdores o vulto venerando, tostado pelo
sol de tantos séculos, acatado por tantas gerações, honrado com tão gloriosas
memórias e enfeitado com tradições de cavalaria e de amores.
Mas se o castelo assim se
apresenta à vista com tantos encantos por qualquer parte que o contemplem, os
panoramas que ele oferece ao viajante do alto das suas torres são tais que não
haverá talento, certamente, capaz de os descrever só com palavras.
Para o lado do Sul, em lugar
mais baixo, estende-se a cidade de Guimarães, sobressaindo dentre apertado
cinto de viçoso arvoredo, que parece querer competir com as grimpas dos 16 campanários
dos templos da cidade. Em torno da povoação, vê-se larga cercadura de prados
verdejantes, orlados de carvalhos e castanheiros, pelos quais trepam vides até
lhes abraçarem os mais altos ramos. Seguem-se aos prados vicejantes colinas,
nas quais se encostam as belas residências dos srs. condes de Vila Pouca e de Arrochela,
com seus jardins ornados de fontes e balaustradas, e dispostos em trono.
Olhando para o Norte lá está o
romântico mosteiro de Santa Marinha da Costa, outrora de monges de S. Jerónimo,
tão graciosamente situado a meia altura de um monte todo coberto de espessos
bosques. Mais para Leste, levanta-se a serra de Santa Catarina, com o seu
diadema de agigantados penhascos formando uma formosa lapa, que serve de capela
à santa que dá o nome à montanha; a qual é tão rica de vegetação que as árvores
corpulentas, que a vestem de alto a baixo, escondem completamente os rochedos colossais
de que a serra está eriçada, e as torrentes que se quebram contra as fragas e
se precipitam nos algares.
Para o lado de Oeste, varia a paisagem.
Colinas pouco elevadas, vales pouco profundos, por toda a parte verdores, aqui
e ali espalhados muitos casais e ermidas, aparecendo furtivamente por entre a
ramagem das árvores, e tudo isto moldurado ao longe por extensa cordilheira de
serras, erguidas em anfiteatro como ondas que, umas após outras, correm
encapeladas contra a praia, constituem um painel não menos encantador do que os
outros quadros.
I. DE VILHENA
BARBOSA.
(in Arquivo Pitoresco, vol. VI, 1863, Lisboa, 1863, pp. 204-206)
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