Ainda o 33 do Anjo

Zona da antiga Porta de S. Paio e da Torre da Alfândega. A vermelho, o prédio que foi vendido em 2014.
Era primeiro de Abril e aqui se cumpriu a tradição do dia das mentiras, com uma mentira construída com um aglomerado de pequenas verdades. O último texto que aqui publiquei, embora assente numa leitura plausível da escritura de venda e dos registos do imóvel da antiga Porta de S. Paio que tem andado nas bocas da gente, é uma leitura especulativa que não tem a mínima aderência à realidade dos factos que são conhecidos, a começar pelo título. A questão da venda do imóvel onde está inserida a Torre da Alfândega, longe de ser um não-assunto, é um assunto importante e pertinente. Ou não estivéssemos a falar da última torre do sistema defensivo de Guimarães.
Analisando todas as informações disponíveis, reafirmo, de modo peremptório, absoluto e definitivo, sem qualquer receio de vir a ser desmentido, que o imóvel que foi vendido em Agosto de 2014, podendo estar deficientemente descrito na correspondente escritura, compreende os números 6, 8, 10 e 12, da rua Dr. Avelino Germano, e 33, 35, 37 e 39, da rua do Anjo. Com a mesma clareza e firmeza de convicção, afirmo que, ao incluir o n.º 33, inclui também o que sobra da última torre do circuito amuralhado que cercou Guimarães desde a Idade Média.
Para percebermos o que tem enredado a discussão, analisemos mais de perto os documentos mais relevantes (os registos do imóvel e a escritura de venda).
Com data de 1874, na matriz predial de S. Paio está registado, no artigo 6493, correspondente ao n.º de polícia 33, da rua do Anjo, um imóvel assim descrito:
um andar no vão da torre, casas, loja que serve de celeiro e adega, e um rossio.
Em 1925, existiam dois imóveis contíguos a este, com o mesmo proprietário (artigos 6494 e 29769 da mesma freguesia). No dia 3 de Julho desse ano, o conservador do registo predial de Guimarães introduziu um averbamento no artigo referente ao n.º 6493, em que informa ter verificado que estes três prédios “formam hoje um único prédio do qual fazia e faz parte a antiga muralha da cidade”.
Naquela data, o imóvel era propriedade do médio Fernando Gilberto Pereira.
Num segundo averbamento, datado de 18 de Maio de 1936, lê-se o seguinte:
Em face dos documentos apresentados na data supra, fica declarado que este prédio se compõe de uma morada de casas de três andares em parte e em parte de um só andar com os números 6, 8, 10 e 12 de polícia, confronta a norte com a rua Doutor Avelino Germano, do sul com o prédio de Manuel Caetano Martins, de nascente com a rua do Anjo e prédio de Maria Leite Moreira, e do poente com prédio de Zeferino José Ribeiro Cardoso e largo 28 de Maio, está inscrito na respectiva caderneta sob o n.º 332 e tem o valor venal de 55.79$40. Este prédio faz também frente para a rua do Anjo, para onde tem os números 33, 35, 37 e 39 de polícia, do qual fazia e faz parte a antiga muralha da cidade. Este prédio era antigamente constituído por três moradas de casas que formam hoje um só prédio.
A data do averbamento transcrito coincide temporalmente com a aquisição deste imóvel por Manuel Fernandes Braga.
Em 1960, o prédio foi adquirido em hasta pública por Joaquim Fernandes Marques. O leilão aconteceu a 2 de Abril daquele ano, sendo a seguinte a sua descrição constante nos anúncios que então se publicaram nos jornais:
Morada de casas situada na Rua do Anjo, freguesia de S. Paio, desta cidade, com o número de polícia 33. Este prédio, conjuntamente com os prédios números 6.494 e 29.769, formam hoje um só prédio, que se compõe de uma morada de casas de três andares em parte e, em parte, de um só andar, com os números 6, 8, 10 e 12 de polícia, e também faz frente para a Rua do Anjo, para onde tem os números 33, 35, 37 e 39 de polícia, e do qual fazia e faz parte a antiga muralha da cidade. Este prédio era, antigamente, constituído por três moradas de casas, que formam hoje um só prédio. Está descrito na conservatória do registo predial no Livro B-23, a fls, 88. sob o n.º 6.493, e inscrito na matriz urbana sob o art.º 332.
Data de 19 de Janeiro de 1968 o averbamento que parece estar na origem da embrulhada em que se transformou a leitura da escritura de venda de 2014. Aí de lê:
Este prédio n.º 6493 compõe-se hoje de um prédio urbano em parte e de um só andar em parte, situado, com os números 6, 8, 10 e 12 de polícia, na rua do Anjo, freguesia de S. Paio. Está inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 332, e tem o valor 816 600$00.
Este averbamento reproduz a descrição inserta no averbamento de 1936, mas omite o que estava escrito nos seus dois últimos períodos, suprimindo a referência aos números 33, 35, 37 e 39 da rua do Anjo. Por outro lado, também deixa de fora a referência à rua dr. Avelino Germano. Ou seja, temos um imóvel, uma rua e umas portas, mas a rua dessas portas é outra, que ali não consta, assim como são outras as portas da rua que lá aparece, que também são omitidas. Se este é o averbamento que vale, por ser o último em que se descreve o imóvel, o que é que se deve assumir como correcto: a rua ou as portas? Ou a rua e as portas? Não conheço a doutrina aplicável a casos que tais, e nem sequer sei se há doutrina. No entanto, parece claro que este averbamento tem o seu quê de descuidado, tendo pouco préstimo para identificar o imóvel que deveria descrever. Além do mais, não havendo aqui omissão, ficaria por saber o que terá sido feito das partes do edifício para onde se entra pelas portas que sumiram ou que confrontam com a rua que desapareceu. Parece confuso? Pois parece. Por outro lado, a ser este o averbamento que deve ser considerado, ficamos perante um paradoxo: quem comprou, comprou algo que não pertencia a quem vendeu (os números 6 a 12 da rua do Anjo). Convenhamos: nada disto faz sentido.
Na escritura de 2014, a descrição do prédio parece basear-se no averbamento de 1968, aparecendo os mesmos números de portas e alterando-se o nome da rua. No entanto, são aí ignoradas as entradas que dão para a rua do Anjo (incluindo o n.º 39, que já não tem porta e que faz parte do imóvel onde havia uma ourivesaria, que tem o n.º 12 na rua dr. Avelino Germano). É evidente que a informação é deficiente, mas a remissão para o artigo urbano 332 esclarece dúvidas. O que se vendeu foi um imóvel com quatro portas voltadas para a rua Dr. Avelino Germano e outras tantas voltadas para a rua do Anjo, entre as quais a porta n.º 33.
Para ajudar a aclarar o enredo, temos o que nos informa o jornal Mais Guimarães desta semana, quando divulga o que consta no documento de actualização do IMI, datado de 2013, onde está descrito um prédio com uma área total de 1028 m2, com um valor tributável de 242 mil euros, o mesmo valor que consta na escritura de 2014.
Por último, para esclarecer quaisquer dúvidas que ainda pudéssemos ter, já tive oportunidade de observar as plantas do imóvel que foi adquirido pela empresa Marvalu em Agosto de 2014, que representam a respectiva área de implantação e os pisos que o compõem. Coincide, em absoluto, com o que tenho afirmado e que está representado a vermelho na fotografia que encima este texto. Trata-se do prédio anteriormente inscrito na matriz predial urbana de S. Paio sob o art.º 332, com mais de 1000 m2 de área coberta, com o valor tributável de 242 mil euros, com uma frente voltada para a rua Dr. Avelino Germano (números 6, 8, 10 e 12) e outra para a rua do Anjo (33, 35, 37 e 39). Inclui, portanto, a Torre da Alfândega.

Em aqui chegando, penso que a Câmara pode ter bons argumentos para negociar, em condições aceitáveis, a entrega da Torre da Alfândega ao domínio público. Mas deve resistir à tentação de seguir pela a via do sofisma, que não engrandece ninguém.

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Aditamento


O texto que vai acima, recebeu um comentário no Facebook de José João Torrinha, um dos raros exemplos de jovens da sua geração que vi envolverem-se na actividade política por paixão e dedicação à causa pública, e não por verem nessa actividade caminho aberto para a construção de uma carreira. Envolve-se com elevação em muitas causas, incluindo algumas de natureza partidárias, mas não segue a lógica das ovelhas no seu rebanho. É senhor, além de uma voz muito radiofónica, de voz própria e de pensamento lúcido e inteligente, que ouço sempre com interesse, mesmo quando discordo do que diz. No comentário a que me refiro (pode ser lido aqui), criticava a veemência das minhas certezas. Por perceber que o que ele escreveu poderá ser partilhado por outros, aqui deixo o que respondi, tentando esclarecer o que tenho dito sobre a questão da Torre da Alfândega.

Meu caro José João Torrinha,
Começo por me congratular com a sua convicção final de que a torre vai voltar a ser dos vimaranenses. Isso não é mau, claro, antes pelo contrário: é muito, muito bom. Como eu dizia a uns amigos, quando percebemos o que oportunidade aberta pelo despoletar da situação com que se têm gasto tantos caracteres, a pontos de correr o risco de ser classificada como bizantina, poderia representar para Guimarães: no final, ainda íamos propor uma medalha de mérito a esta vereação e o Presidente da Câmara, por ter sido no seu mandato que a Torre da Alfândega voltou a ser dos vimaranenses. Sabíamos que, para que não se deixasse escapar essa oportunidade, como já tinha escapado aquando da requalificação do Toural e da Alameda, iríamos ter que gastar muito latim e muitos caracteres para convencermos quem precisava de ser convencido da importância histórica, simbólica e patrimonial da torre, a ponto de tornar a necessidade da sua passagem para o domínio público uma prioridade consensualmente assumida, bem assim como da relevância do lote que encosta à torre do lado da rua do Anjo para a devolução da torre ao usufruto público.
As certezas que enunciei decorrem, claro, das minhas convicções. É certo que uma leitura minuciosa e à letra dos documentos de registo e da escritura do imóvel que se discute suscita dúvidas. E, se as suscitam a mim, que não tenho qualquer qualificação técnica para as dissecar, percebo que os especialistas nestas matérias encontrem nelas argumentos contraditórios. Só que as minhas certezas não provêm só desses documentos. Assentam também, por exemplo, na observação das plantas do imóvel que foram apresentadas ao comprador pela agência imobiliária que mediou o negócio. O que nelas está desenhado é o que a parte vendedora dizia que tinha para vender e o que a parte compradora terá como certo que comprou. Ora, se se demonstrar que aquilo que está nas plantas não corresponde ao que uma parte podia vender, nem ao que o comprador comprou, sou levado a concluir que uma das partes ficará numa situação muito complicada. E não me parece que essa parte seja a que comprou.
Cá por mim, não perfilho nenhuma teoria da conspiração para explicar este negócio. Estou sinceramente convicto de que quem vendeu estava de boa-fé ao vender o que sabia pertencer-lhe, de que quem comprou estava de boa-fé ao comprar o que comprou e de que a Câmara Municipal de Guimarães estava de boa-fé, à luz dos seus projectos e da informação que lhe foi facultada, ao não exercer o direito de preferência que a lei lhe conferia. Vejamos porquê.
Quanto a quem vendeu, que é quem, na prática (embora, sei bem, involuntariamente) é posto em questão por quem continua a manifestar dúvidas quanto ao objecto que foi vendido, nenhum de nós ousará, sequer, beliscar a sua honorabilidade ou a sua boa-fé.
Quanto a quem comprou, sei que há todo um histórico susceptível de gerar desconfianças. Há todo um contencioso, já antigo, referente a outros negócios do empresário Domingos Machado Mendes; há a suspeição, veiculada por declarações de responsáveis políticos da nossa praça, de que seria reincidente em negócios em que andava uns passos à frente da CMG, adquirindo propriedades que estavam na mira da Câmara, e de que, não sendo adivinho, teria acesso a informação privilegiada. E eu, que no creo en brujas, pero que las hay las hay, também comungo de certas perplexidades. Só que, no negócio que envolve a Torre da Alfândega esta questão não se pode colocar. Aqui, não pode ter havido informação privilegiada fornecida do interior da Câmara: (1) porque, ao que se sabe, o prédio esteve cerca de dois anos à venda, sem encontrar comprador e, se a Câmara estivesse interessada nele, poderia tê-lo adquirido; (2) porque, mesmo não o tendo adquirido enquanto esteve à venda, a Câmara podia exercer sobre ele o direito de preferência que a lei lhe faculta; (3) porque a Câmara, como todos percebemos, não tinha qualquer projecto para aquele espaço.
Quanto à Câmara, não tenho a mínima razão para sequer suspeitar que não estivesse de boa-fé quando não exerceu o direito de preferência, na sequência da venda de 2014. Por um lado, (1) porque não tinha intenção de intervir naquele espaço, e, admito-o como o tenho escrito desde o princípio deste debate, (2) a informação colocada no portal Casa Pronta e constante na escritura de compra e venda não descrevia claramente o imóvel em causa, não permitindo compreender que incluía a Torre da Alfândega. Este último ponto parece-me ser, como já o disse, uma bom argumento para a Câmara negociar com o comprador do imóvel, arguindo a possibilidade de reversão do negócio, por lhe não terem sido facultadas informações essenciais para a sua tomada de decisão quanto ao exercício do direito de preferência.
Ora, acontece que aquilo que eu tenho como certo quanto a quem é o actual proprietário do edifício que inclui Torre da Alfândega, era também ainda há poucos dias, certo para a Câmara. Aqui, sou forçado a recordar o que o jornal Público escreveu no dia 18 de Março, citando o vereador da Cultura:
“Estou em condições de poder dizer que está garantido o acesso público à torre da Alfândega”, afirmou Bastos. Dentro da muralha funcionou, durante os anos 1980, um bar e existe ainda um salão de jogos. O novo proprietário do espaço apresentou uma ideia para a recuperação total do interior da estrutura medieval, fazendo todo o investimento, mas aceitou tornar o espaço do topo da muralha acessível ao público. “Conseguimos o objectivo essencial”, valoriza o vereador vimaranense.
No mesmo sentido, poderia citar o inopinado, e cada vez mais incompreensível, comunicado da Câmara, publicado na mesma altura.
Portanto, carece de demonstração que eu esteja “a tentar encaixar uma realidade numa convicção”. Bem pelo contrário, eu nunca afirmei “que a CMG não quis, ou que falhou, ou outras coisas mais ou menos inconfessáveis”. Nunca o afirmei, repito. Sei, por convicção e certeza, que assim não foi, apesar de já o ter visto afirmado por aí.
Neste processo, acredite-me, estou à margem de questões de natureza político-partidária e não perfilho, como julgo ter deixado claro, teorias conspirativas. Quanto ao objectivo essencial, julgo que posso afirmá-lo, é hoje transversal a todos os vimaranenses interessados pelas coisas da sua terra, independentemente de cores partidárias. Pode ser resumido na proclamação do nosso comum amigo Miguel Bastos:
“Devolvam a torre ao Povo, porra!”
Haja bom senso, que há-de chegar o consenso.

Um abraço.

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