Aqui partilho umas quantas reflexões soltas, em jeito de epílogo muito pessoal, sobre a questão da Torre da Alfândega.
1. Leio no O Comércio de Guimarães de hoje um texto
muito interessante da historiadora Manuela Alcântara onde, com base em
documentação existente no Arquivo Municipal Alfredo Pimenta traz novos dados
acerca da Torre da Alfândega e dos proprietários do n.º 33 da rua do Anjo, entre
1844 e 1873, em tempo em que esteve na posse dos descendentes de Antónia
Joaquina, mãe de José António Peixoto de Lima, que a adquirira em hasta pública
em Outubro de 1841. Este imóvel permaneceria na família Lima até 1924, ano em
que foi adquirido pelo médico vimaranense Fernando Gilberto Pereira. Este
trabalho, de uma estudiosa com quem muito tenho aprendido, ajuda a perceber que há muito para saber sobre o processo de derrube e
de apropriação privada da muralha e das torres que cercaram o burgo vimaranense
desde a Idade Média.
2. No mesmo
jornal, leio também o relato da última reunião da vereação municipal, onde confirmo
a notícia que tardou, mas que tinha por certa no desfecho do debate
aberto com divulgação pública pelo vereador da CDU, Torcato Ribeiro, de que o
imóvel que inclui a Torre da Alfândega tinha mudado de mãos em 2014, sem que a
Câmara exercesse o direito de preferência que a lei lhe confere em relação a
transacções de edifício situados dentro do casco urbano classificado como
Património Mundial: a Torre da Alfândega vai regressar ao domínio público,
depois de passar 208 anos em mãos de privados. Esta é uma notícia que se saúda sem quaisquer reticências.
3. Falta
agora saber como é que vai acontecer a devolução da torre ao domínio público,
porque as notícias não são suficientemente esclarecedoras, por apontarem
para duas vias distintas e, aparentemente, simultâneas. Por um lado, percebe-se
que se vai ensaiar a solução que aqui sugerimos diversas vezes, que passa por
explorar a possibilidade da “retoma do direito de preferência”, com o fundamento
de que a Câmara não o terá exercido em devido tempo porque as informações que
lhe foram facultadas eram omissas em informações relevantes para a sua tomada
de decisão. Por outro lado, anuncia-se que a Câmara já estará a recolher os
elementos necessários para dar início ao “processo expropriativo do n.º 33 da
rua do Anjo”, anúncio que carece de informação mais detalhada, para que se
entenda. É que, tanto quanto percebo, a expropriação deve ser precedida de
declaração de utilidade pública em relação ao bem imóvel a expropriar, decretada pelo
ministro com competências para o efeito ou, em certo casos, pela assembleia
municipal, declaração que deve ser requerida pela entidade interessada e
antecedida por diligências para a aquisição do imóvel a expropriar por via de
direito privado. Ou seja, a expropriação por interesse público é o instrumento
a que se recorre quando falha a via negocial. Ora, sem haver negociação, não é
possível afirmar que não houve acordo para aquisição por via do direito privado.
Fica assim por perceber quais as razões que levam a Câmara a anunciar que vai
dar início a um processo expropriativo.
4. Por outro
lado, a via da expropriação, para além de poder originar um processo que tenderá
a arrastar-se no tempo, já que não se vislumbra como é que se pode invocar carácter
urgente ou urgentíssimo, essencial para aceder à posse administrativa, para a intervenção num
imóvel para o qual ainda não existe qualquer projecto de intervenção, poderá revelar-se
uma solução substancialmente mais cara do que a retoma do direito de preferência
relativa à transacção de 2014. É que, neste caso, o valor de referência seria o
preço pelo qual o imóvel foi vendido e que consta na respectiva escritura. Seguindo
a via da expropriação, o expropriado terá o direito de receber uma “justa
indemnização”, correspondente ao valor real e corrente do imóvel à data da
declaração da utilidade pública, o qual será, seguramente, bem superior ao
valor por que foi adquirido em 2014 (quando foi vendido, o imóvel já tinha um
valor patrimonial quase 30% superior ao valor pago pelo seu actual proprietário).
Assim, a retoma do direito de preferência relativa à transacção de 2014 afigura-se como a via
mais sensata para a protecção do interesse público.
5. A
discussão em volta deste assunto tem estado inquinada, desde o princípio, pela
presunção de que este seria “mais um” dos negócios em que se teria
especializado o comprador, Domingos Machado Mendes, em relação aos quais se têm
levantado suspeitas de que teria acesso informação privilegiada originária da
Câmara. Admito que tenham fundamento as suposições que há muito andam no ar.
Porém, neste caso, é certo que não houve informação privilegiada, nem poderia
haver, quer porque o imóvel esteve anos à procura de comprador, quer porque a
Câmara não tinha qualquer projecto que envolvesse aquele espaço. Só existe uma
razão para explicar porque é que a Câmara não adquiriu o n.º 33 da rua do Anjo
antes de Agosto de 2014: não estava, até aí, interessada em tal aquisição. Se o
estivesse, teria tratado de saber quem eram os seus proprietários e não teria qualquer
dificuldade em consumar a aquisição.
6. Muitas
vezes procurei explicações para as sucessivas mudanças no discurso dos
responsáveis municipais desde o dia em que este assunto se tornou público: no
dia 16, na reunião de Câmara, levantam-se dúvidas quanto a quem seria o
proprietário do n.º 33 da rua do Anjo; no dia 17 (notícia do Público do dia
seguinte), as dúvidas já tinham desaparecido e já havia acordo com o
proprietário do imóvel para que o topo da Torre da Alfândega passasse a ser
acessível ao público; nesse mesmo dia, à hora de jantar, a Câmara publicou um
comunicado em que dava a entender que não existia qualquer acordo com o
proprietário (e onde afirmava que, sob pena de avançar com “processo
expropriativo”, os imóveis transaccionados entre os privados, “terão de
constituir servidão pública de acesso público ao cimo deste monumento da Torre
de Alfândega”); no dia seguinte, com uma alfinetada às “mentes com uma grande
capacidade de imaginação” que poderiam pensar que o muro onde está afixada a frase
“Aqui Nasceu Portugal” poderia ser vendido, o vereador reafirma que “o proprietário tem um projecto
que é de valorização patrimonial, um projecto de aposta no turismo, e isso é
quanto basta para que a Câmara fique satisfeita com esta resolução”; nesse
mesmo dia, o Correio da Manhã publica uma notícia em que reproduz afirmações do
mesmo vereador, segundo as quais “o que foi comprado por um privado a outro
privado foi o edifício contíguo à Torre da Alfândega e que tem um dos acessos
ao monumento”… etc., etc…
…assim se seguiu
pelos dias que ainda faltavam para terminar o mês de Março, até que entrou
Abril e, ao que parece, com ele entrou também algum do bom senso para que se
andava a apelar desde o princípio. Foi então que percebi a razão de ser de tantas resistências
para assumir o óbvio: é que por estes dias já se limpam espingardas para as
autárquicas de 2017, pelo que havia que reduzir ao mínimo a possibilidade de
forças políticas concorrentes capitalizarem dividendos numa matéria
que tem uma relevância simbólica não desprezível.
7. É em momentos
como estes que se percebem forças e fraquezas. Forças e fraquezas, todos as
têm. Uma liderança forte é aquela que percebe onde estão as fraquezas e tem
engenho e arte suficientes para as transformar em força. Percebo que suceder a
uma liderança vigorosa e carismática como aquela que conduziu os destinos da Câmara
Municipal de Guimarães durante mais de duas décadas não é para todos e que cortar
o cordão umbilical para se conseguir afirmar uma voz própria não é tarefa fácil,
embora seja necessária. Mas há momentos em que ajuda pensar como pensaria quem nos
antecedeu para enfrentarmos o problema que temos à nossa frente. Neste caso, pensar
e agir à Magalhães, implicaria perceber
que este era um assunto em que, afinal, estavam todos de acordo para, a seguir,
procurar uma solução que a todos envolvesse. O fazê-lo, era o mais fácil:
chamar os vereadores da oposição, levá-los à verificação de que estavam todos
no mesmo barco e que era, acima de tudo, o superior interesse de Guimarães que
estava em cima da mesa, para traçar uma estratégia comum com que
todos se pudessem comprometer.
8. De tudo o
que foi dito acerca do que estava em questão no debate sobre a Torre da Alfândega,
percebe-se que faz muita falta a placa de identificação do monumento sugerida
pelo vereador Torcato Ribeiro. E não é preciso esperar que a poeira assente: é urgente.
Para não continuarmos a ficar com dúvidas se, quem fala da muralha, é mesmo da
muralha que está a falar, ou se é da frente da torre que está voltada para Sul.
9. Não é muito avisado transformar em adversários todos os que nos criticam,
por muito injustas que achemos as críticas. É que, se insistimos muito, eles acabam mesmo
transformados em adversários.
10. Pela parte
que me cabe, assumindo por garantida a devolução da Torre da Alfândega aos vimaranenses,
assim como a passagem para o domínio público do lote que, do lado da rua do
Anjo, com ela confronta, dou por encerrada a minha contribuição para este
debate, com o qual, confesso, aprendi bastante. Quanto ao que vai ser feito na
torre, não darei palpites. Até porque falta ainda muito trabalho técnico,
nomeadamente no âmbito da arqueologia e da engenharia de estruturas
especializada em construções antigas, para se perceber ao certo o que ali temos
e o que ali poderá ser feito. Só faço votos para que não ponham lá nada com
nome em estrangeiro.
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