A Torre da Alfândega como painel publicitário, c. de 1924 (Fotografia da Colecção da Muralha) |
Há muito que
tinha prometido escrever, “com
mais vagar”, sobre a Torre da Alfândega. Cumpre-se agora uma promessa que tardou
mais de cinco anos para ser cumprida. Aqui se partilham algumas informações que
podem ajudar a iluminar a discussão em curso sobre este monumento, tendo em vista
uma solução que só precisa de bom-senso e de consenso.
A estrutura
defensiva de Guimarães, circunscrita inicialmente à pequena Vila do Castelo,
foi acrescentada, entre a segunda metade do século XIII e as duas primeiras
décadas do século XIV, com uma segunda cerca fortificada, com as suas muralhas,
torres, cava e portas, que contornou o burgo conhecido por Vila de Baixo, que fora
crescendo em volta da Colegiada. Das torres que então foram erguidas, umas
tinham funções de vigilância e de protecção das portas de acesso à vila, que
ficavam no seu interior - torres da Senhora da Guia, da Porta da Vila e de S. Bento
ou Santa Luzia. Outra, a Torre dos Cães, implantada sensivelmente a meio do
pano de muralhas ainda visível na actual Avenida Alberto Sampaio, tinha exclusivamente
funções de vigilância. As restantes, a Torre Velha e a Torre da Alfândega, não abrigavam
portas, embora vigiassem os acessos a portas que foram abertas na muralha depois
da sua construção - a porta da Torre Velha e a Porta Nova ou Postigo do Anjo, esta
já no Toural.
A Torre da Alfândega, assinalada (a preto) sobre a planta de Guimarães de c. 1569. |
Também
conhecida por Torre das Biscaias, nome que teria tomado do local onde foi
implantada, ficaria mais conhecida como Torre da Alfândega, depois de nas suas
imediações ter sido erguido o edifício da Alfândega de Guimarães (em cujo topo
esteve, originalmente, a estátua do Guimarães das duas caras, actualmente na praça da Oliveira). É o ponto da cerca
fortificada de Guimarães situado mais a Sul e mais afastado do Castelo. Tinha uma
planta quadrada em U, aberta do lado que, a Norte, confronta com o interior da
vila, e fechada nos três lados voltados para o exterior da linha de muralhas. Cada
um dos seus muros tinha oito palmos de largura (aproximadamente 1,80 metros) e
quarenta palmos de comprimento (quase 9 metros). Não se pode dizer ao certo
qual seria a sua altura original. Não andaremos longe da verdade se dissermos que
deveria ter, pelo menos, o dobro da altura da muralha, que tinha cerca de nove
metros.
Durante o
tempo em que a cerca de muralhas cumpriu a sua função primordial de proteger o
burgo dos ataques dos inimigos em tempo de guerra, a administração local cuidava
atentamente da sua conservação e não permitia que fosse utilizada para outros
fins que não aqueles para que fora erguida. Depois da Guerra da Restauração, que
se estendeu até 1668, altura em que, pela última vez, a Câmara investiu muitos cuidados
e meios na reparação dos muros e das portas, a estrutura medieval de defesa de
Guimarães foi-se tornando obsoleta, em larga medida porque a vila crescia, cada
vez mais, para o espaço extramuros. A partir daí, a velha muralha e as suas
torres começaram a arruinar-se e a ser apropriadas para uso privado.
Em 4 de
Agosto de 1767, o rei D. José I fez publicar uma resolução que permitia o
aforamento de terrenos públicos para edificar casas, de modo a propiciar o
crescimento cidades e vilas do Reino, constituindo-se prazos fateusins ou enfitêuticos,
processo pelo qual o domínio útil do chão era transferido para particulares,
mediante o pagamento às Câmaras do correspondente foro ou renda, que era
estipulado depois de uma avaliação promovida pelo Provedor da Comarca, com
participação do Procurador da Câmara.
Com base
nesta resolução régia, o processo de aforamento dos terrenos encostados à
muralha de Guimarães para construção de casas recebeu um impulso significativo.
A Torre da Alfândega e terrenos confinantes não escaparam a este destino. O primeiro
emprazamento conhecido, feito a favor de Cristóvão Dias de Castro, tem a data
de 11 de Dezembro de 1793, e consta de “um terreno que foi do público, para
edifício de dois portais nas casas do Postigo, freguesia de S. Paio, desta
cidade”. As suas confrontações eram as seguintes: do lado do nascente com a rua
pública que ia em direcção aos Açougues; pelo poente com casas que já pertenciam
a Cristóvão Castro e pelo norte com a rua do Postigo de S. Paio. A sul,
confrontava com “o muro da vila que se segue junto à Torre da Alfândega”.
Os direitos
referentes a este contrato de emprazamento, que corresponde aos actuais números
25 a 31 da actual rua do Anjo, passarão, por herança, para uma filha do
primeiro enfiteuta, Maria Rita de Castro, que, em final de Maio de 1808, os
vendeu a uma senhora chamada Maria Luísa. Esta, logo a seguir, requereu a adjudicação
do terreno da muralha para utilizar como fundo das casas que tencionava mandar
erguer naquele local. Este terreno englobava o vão da muralha e o respectivo muro.
A adjudicação foi feita por sentença de 10 de Outubro de 1808, após a correspondente
avaliação. O prazo tem a data de 24 de Dezembro, tendo obtido confirmação régia
em 20 de Março de 1809.
Entretanto,
uma provisão régia de 6 de Dezembro de 1800, havia autorizado o juiz de fora e
a Câmara de Guimarães a demolirem os muros e as torres da cerca de Guimarães, para
se usar a sua pedra em reparações das vias públicas e dos aquedutos que
abasteciam a vila. A Torre da Alfândega começará a ser demolida em 1812. Em
finais de Setembro desse ano, depois de se verificar que a pedra de perpianho obtida
desta demolição era demasiado mole
para servir nas calçadas, esta foi vendida em hasta pública, tendo sido arrematada
a José Antunes Veloso Guimarães, que pagaria 775 réis por cada carro de pedra.
Passado um
ano, prosseguia a demolição da torre. No dia 25 de Setembro de 1813, a Câmara
decidiu mandar reparar as calçadas da vila que se encontravam em mau estado. À
falta de dinheiro, foi então decidido que seriam vendidos 50 carros de pedra da
Torre da Alfândega, revertendo a correspondente receita para custear aquelas
obras. Em hasta pública, a pedra foi arrematada por 20$000 por um vizinho da
rua do Postigo, Bernardo Francisco.
Nos anos
seguintes a demolição continuaria. No final de Janeiro de 1816, o tesoureiro da
Câmara prestou conta da receita do produto da pedra arrematada para conserto
das calçadas, em que apareciam duas verbas referentes à Torre da Alfândega, uma
paga por João Lemos, outra por Maria Luísa, a titular do emprazamento dos
terrenos da torre e confinantes. Há ainda notícia de uma nova venda de pedra desta
torre em Dezembro de 1819, desta vez a José Luís Lopes, da freguesia de S.
Vicente de Passos,
A casa com
os números 25 a 31, que englobava o terreno da Torre da Alfândega, foi posta em
hasta pública em 14 de Junho de 1834, tendo sido adjudicada a Bernardo de Sousa,
por conta de dívidas contraídas pelo viúvo de Maria Luísa. Na avaliação a que então
se procedeu, o lote aparece descrito e como “uma morada de casas e seu terreno
dentro da torre”.
Em Outubro
de 1841, este edifício, assim como o n.º 33 da mesma rua, foram adquiridos, em
compra judicial, por José António Peixoto de Lima, com procuração da sua mãe, Antónia
Joaquina.
À altura daquela
venda, o nº 33, pertencia a Maria Rosa de Sousa, menor. Na avaliação que então
foi feita, consta que incluía um troço da “antiga muralha e vão da mesma”, e no
acto da venda foi apregoado como sendo uma “morada de casas, vão e torre e sua
pedra”. Esta transacção teve o consentimento da Câmara em 7 de Maio de 1851,
ficando então claro que o conjunto de imóveis que passou para a posse de
Antónia Joaquina se compunha de “casas, vão de torre, pedra e muralha”.
Aquando do
seu casamento, em 1844, José António Peixoto de Lima recebeu da sua mãe, em
dote, as casas números 25 a 31 da rua do Anjo, assim como metade do vão da torre
e da pedra que existisse nesse terreno, na torre e na muralha.
Em 1873, por
falecimento de José António Peixoto de Lima a casa com o n.º 33 passou para a
posse da sua filha Filomena. Quando esta morreu, foi herdada pela sua mãe, Cândida
Filomena Morais Lima, que lhe sobreviveu e que a transmitiria ao seu filho, o Padre
Francisco Peixoto de Lima.
*
Entretanto,
com o curso do tempo, foram erguidos novos edifícios dos lados nascente e
poente da Torre, que por ela alinharam as suas fachadas. Deixaram de ser
visíveis as suas faces laterais e, com o tempo, muitos acabariam por julgar que
se tratava de um troço da antiga muralha, que na verdade corria meia dúzia de
metros mais para dentro. No início do século XX não lhe era atribuído grande
valor, sendo utilizada como suporte para publicidade. Em 1906, aquela parede estava
coberta de anúncios, Em cima, um da loja Neves e C.ª, da rua de Gil Vicente. Em
1924, a face visível da torre foi ocupada por um enorme anúncio da Vacum Oil
Company.
Em 1934, a Câmara
pediu autorização ao proprietário da Torre da Alfândega para acrescentar ao
muro algumas fiadas de pedras e meia dúzia de merlões para sugerir as antigas
ameias da velha torre, que foi erguida até à cota do edifício com que confronta
pelo lado do Nascente. Por essa altura, foi retirada a cal que rebocava a
parede. Acabava a torre como painel para afixação de publicidade e a torre
recuperava parte da sua antiga dignidade. Essa intervenção foi notada no pregão
das festas nicolinas daquele ano, escrito por Jerónimo de Almeida:
Já vejo desnudar as pedras da
Muralha
Que, junto do Toural, ostentavam
anúncios,
Como se fosse o véu de uma triste
mortalha
Indicando os fatais e tremendos
prenúncios
Duma grande batalha!
A partir da
década de 1960, o que sobra da única torre da cerca de muralhas medieval de Guimarães
que sobreviveu até aos nossos dias, ganhou particular simbolismo no quadro da
identidade de Guimarães associada à fundação da nacionalidade, coma afixação
nas suas pedras da inscrição Aqui Nasceu Portugal.
*
Entretanto,
em 1924, o proprietário deste conjunto de imóveis passou a ser o Dr. Fernando
Gilberto Pereira. Mais tarde seriam titulares desta propriedade Joaquim
Fernandes Marques e a sua esposa Maria Amélia Coutinho Marques. Após a morte de
ambos, seria transmitida em herança aos seus filhos, que em 12 de Agosto de 2014
a venderam à empresa Marvalu - Investimentos e Gestão Imobiliária, S.A., de
Domingos Machado Mendes, residente em Joane, Vila Nova de Famalicão, a quem
hoje pertence, não obstante algumas dúvidas que têm sido levantadas. Na
escritura referente a esta última transmissão de propriedade, a identificação do
imóvel em questão é susceptível de gerar algumas dúvidas. No entanto, pelo que
tem sido tornado público, não restarão muitas dúvidas de que se trata do imóvel
que integra a Torre da Alfândega, e cujos inquilinos pagam agora renda à
empresa interveniente na transacção como compradora.
A Câmara Municipal
de Guimarães, como facilmente qualquer pessoa poderá comprovar, se algum dia
teve dúvidas acerca de quem seria o proprietário da Torre da Alfândega, assim
como do respectivo muro voltado a Sul, já as terá dissipado em 1934. Em reunião
da vereação realizada no dia 8 de Novembro desse ano, como se lê na respectiva
acta, que o Arquivo Municipal Alfredo Pimenta disponibiliza na sua página da internet, a edilidade vimaranense deliberou:
Cópia do extracto da acta da reunião da Câmara Municipal de 8 de Novembro de 1934 (DO Arquivo Municipal Alfredo Pimenta) |
- Solicitar
ao Senhor Doutor Fernando Gilberto Pereira autorização para no pano de muralhas
que possui no Largo Vinte e Oito de Maio, fazer as seguintes obras: - Elevar
três ou quatro fiadas o referido muro, assentando sobre ele oito ou nove ameias
de pedra.
- Que obtida
a necessária autorização, o proprietário referido não aliena nem renuncia por
tal motivo o seu direito sobre o citado pano de muralha, pertencendo-lhe as
melhorias ali feitas.
O
consentimento solicitado seria concedido, como consta da acta da reunião da
Câmara de 22 do mesmo mês, onde se informa ter sido recebia comunicação
Cópia do extracto da acta da reunião da Câmara Municipal de 22 de Novembro de 1934 (DO Arquivo Municipal Alfredo Pimenta) |
Do Doutor Fernando Gilberto Pereira a informar, em resposta ao nosso ofício n.º 450 de dezassete do corrente, que tem a maior satisfação em conceder a autorização no mesmo pedida.
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Nota final:
Há dias, publiquei aqui um texto que fechava com uma nota de salvaguarda que dizia:
“O que escrevi acima acerca da propriedade do muro da torre da Alfândega foi escrito com base na informação disponível acerca dos procedimentos adoptados no século XVIII para o aforamento do chão junto do muro e na informação prestado por José de Guimarães ao Guimarães Digital. Sabemos que, em alguns casos, a Câmara, ao fazer a venda definitiva dos antigos foros, também vendia a pedra dos muros que com eles confinavam. Pelo que se depreende, não terá sido esse o caso da Torre da Alfândega.”
O que escrevo hoje, sendo em algumas partes diferente do que escrevi antes, resulta de estar agora na posse de elementos bem mais completos e objectivos do que os que possuía então.
2 Comentários
Obrigado Dr. Amaro das Neves por este seu esclarecedor trabalho
Castelar
Rita Miranda