A morte da Menina do Costeado, por João de Meira

Portal da Casa do Costeado (fotografia da colecção da associação Muralha)
Da história trágica da Menina do Costeado, já se falou aqui (O mistério da morte da Menina do Costeado), usando como fonte, essencialmente, o testemunho de um contemporâneo, o Cónego Pereira Lopes. Hoje revisitamos o crime que a vitimou, pela pena de João de Meira, num texto que publicou em 1906 no jornal Independente.

Velho crime
Ao exmo. snr. Valentim de Sá Meneses

Na noite de 4 para 5 de Maio de 1841, que foi uma noite esplendorosa de luar primaveril, havia baile de anos em casa de João de Melo Pereira de Sampaio, junto ao terreiro das Claras.
Desde as da noite que nas vastas salas se dançava animadamente.
As janelas estavam abertas; e fora, no largo, os criados de libré, que guardavam as carruagens desatreladas onde seus amos tinham vindo, empoleirando-se nos tectos das berlindas gozavam do espectáculo feérico.
Entre as que mais se divertiam, esfuziante de alegria e mocidade, destacava se a rica herdeira do Costeado, a filha do falecido militar José de Nápoles.
Vestia de seda cor-de-rosa e, no rodopiar das danças, a saia de baixo, de fina cassa branca, parecia espumejar como uma onda revolta.
O velho liberal António de Nápoles, seu tio e seu tutor, revia-se na sobrinha, que sendo feia tinha aquele encanto particular de agrado e sedução com que a natureza dota, para compensá-las, aquelas a quem nega a formosura.
Já duas vezes lhe dissera para se retirarem. Já duas vezes ficara ante as suas instâncias. E quando afinal abandonaram o baile batia uma da noite na Oliveira.
António de Nápoles acercou-se da sua berlinda.
O Joaquim boleeiro, que estava contando entre um grupo de amigos como, uma hora antes, quando trazia para cima os machos que fora guardar ao Costeado, encontrara um homem alto, de crossa e chapéu desabado junto à porta da D. Gertrudes, ao fundo da rua das Oliveiras, correu pressuroso, gritando ainda aos colegas:
— Ele não queria que o conhecessem porque se voltou para a parede quando passei.
O escudeiro Jerónimo, muito hirto na sua libré nova, abriu a portinhola envidraçada.
Subiram os três, o fidalgo, a sobrinha D. Maria Júlia da Luz Vaz Vieira de Melo Alvim, que assim se chamava, e a mãe desta, sua cunhada, D. Joaquina Máxima de Faria Palhares Freire de Andrade.
Aconchegando do corpo o rico xaile de Tonkin bordado enque se abafava, D. Maria Júlia ocupou a almofada da frente. Mãe e tio sentaram-se atrás.
O criado saltou para a tábua e o boleeiro, bifurcando-se num dos machos, fez arrancar a parelha.
O magnífico luar enchia de fortes contrastes de claro-escuro o velho burgo quase medieval que então era Guimarães.
António de Nápoles cabeceava de somo e nos olhos de D. Maria Júlia havia um brilho intenso, como que um derradeiro reflexo das mil cintilações daquela festa deliciosa a que acabava de assistir.
Ao entrar na rua das Molianas o cocheiro tornou a divisar o homem de crossa rente à casa das Engonças, mas não fez caso.
Súbito o vulto recolheu-se ao escuro da Viela das Freiras e, quando a berlinda com todo o barulho das suas velhas ferragens passou em frente da estreita ruela, o estrondear de um tiro fez empinar os machos que romperam numa desenfreada carreira.
Com risco de tombar o coche de onde saíam gritos aflitivos, o boleeiro colheu as rédeas, voltou rapidamente a parelha contra a parede, e assim a susteve.
A esse tempo já o moço de tábua descera e, abrindo a portinhola direita, cujo vidro voara em estilhas, vira D. Maria Júlia cabida sobre o regaço de sua mãe.
O fidalgo António de Nápoles saltara todo ensanguentado, clamando por socorro em altos brados. E, dentro,D. Joaquina Máxina semi-louca repetia:
— Filha, filha! Mataram a minha menina!
Às janelas apareceu gente. Os mais timoratos abrindo apenas uma fresta dos estreitos postigos espreitavam a medo.
Um criado do cirurgião Varela desceu à rua, mal vestido com uma velha espingarda reiúna.
A esse tempo o assassino, que se evadira pela viela, devia ir longe.
Apesar isso, enquanto o boleeiro levava para o Costeado os amos sucumbidos e o cadáver ainda quente, Jerónimo, o criado de tábua, tomando a espingarda das mãos do moço do cirurgião correu destemidamente pela viela até Trás-Gaia, e depois até casa sem lhe encontrar o rasto.

***

Participado para juízo o crime a 5 de Maio, por ofício do juiz eleito de S. Sebastião Jerónimo José da Costa, mandou o juiz de direito dr. António Correia Botelho Teixeira Rebelo, no mesmo dia, proceder em sua presença ao exame de corpo de delito e inquirição de testemunhas.
Vieram primeiro os cirurgiões António José de Faria, morador na rua nova das Oliveiras e Domingos José Ribeiro e Silva, mais conhecido por Domingos de Rabiços, morador em S. Lázaro.
Examinando o cadáver os peritos médicos encontraram no terço supero-externo do braço esquerdo quatro feridas profundas e uma superficial, e no tórax entre a terceira e quarta costelas esquerdas mais duas feridas de onde saíra sangue em abundância.
Denotavam todas ter sido feitas por tiro de bala ou quartos e nas duas do peito encontravam-se ainda os zagalotes que as haviam produzido.
Segundo a declaração dos cirurgiões a morte foi consequência imediata e inevitável das feridas toráxicas.
Ouvidos depois os carpinteiros João de Macedo de S. Tirso de Prazins e Bento Ferreira Salgado de S. Vicente de Oleiros, que se achavam trabalhando em Creixomil e haviam examinado como peritos a berlinda em que a desditosa fora assassinada, declararam encontrar o vidro da portinhola direita despedaçado, um zagalote incrustado na travessa da mesma e, no caixilho de vidro, o orifício por onde outro devia ter penetrado.
Chamado então a depor António de Nápoles, descreveu o crime como vimos que ele foi perpetrado e, perguntado se sabia quem podia tê-lo praticado ou mandado praticar, respondeu que, se suposições eram suficientes para fundamentar queixas, ele desconfiava que fosse mandatária a Rosinha do Toural.
As testemunhas ouvidas a seguir, Joaquim de Sousa, filho de Manuel de Passos, de Creixomil e Jerónimo da Silva, filho de António da Silva de S. João de Ponte, o primeiro boleeiro e o segundo criado de tábua da casa do Costeado, nada acrescentaram às declarações de seu amo.
No mesmo dia o administrador José Inácio de Abreu Vieira, por alcunha, o Cutalho, procedeu a investigações no Costeado e entrando no quarto onde estava o cadáver fê-lo descobrir encontrando as lesões assinaladas pelos peritos e notando ainda pequenas feridas provenientes ao que parece de lascas do vidro da portinhola, projectadas pela violência do tiro.
Garantindo-lhe as criadas que o cadáver não tinha mais lesões, o administrador e seu escrivão Luís António de Freitas, não levaram mais longe a sua investigação, passando a examinar a roupa.
O vestido de seda cor de rosa, o xaile de Tonkin, o colete, a camisa e a saia de cassa branca, tudo se achava ensopado em sangue, tendo a camisa, o colete, o corpo do vestido e o xaile os buracos dos mortíferos zagalotes.
Depois ouviu os mesmos carpinteiros sobre os desgastos da berlinda, e sobre o crime as mesmas testemunhas que haviam deposto perante o juiz de direito.
Juntado aos autos, este auto de investigação, foi, a requerimento, do delegado Francisco Leite Olireira da Costa Bernardes, lavrado auto de querela contra Rosa Maria da Silva, também conhecida por Rosinha do Toural, aquela de quem dizia a cantiga popular:
                             A Rosinha do Toural
                             Tem uma saia amarela;
                             Ela cuida que é de seda,
                             Ela é mas é de...
João de Meira.
Independente, Guimarães, 1 e 8 de Abril de 1906

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