Pergunta-me um amigo se as
Memórias de Araduca entraram novamente em hibernação.
Não.
O que acontece é que
por estes dias me tenho dedicado a ler tudo o que escreveu João de Meira e tudo
o que encontro que se escreveu sobre João de Meira (em parte a reler, em parte
a descobrir, porque, afinal, João de Meira escreveu muito mais do que aquilo que
normalmente lhe tem sido atribuído). João de Meira foi, em Guimarães, a
inteligência mais luminosa da sua geração. Destacou-se como médico e professor
de medicina, mas foi, acima de tudo, um escritor de enorme talento, uma
promessa que a morte precoce impediu que fosse cumprida. No próximo sábado, 30
de Novembro, a seguir ao Pinheiro, partilharei a minha leitura dos escritos de João de Meira na
sessão evocativa do centenário da sua morte, promovida pela Sociedade Martins
Sarmento. Entretanto, aqui fica um aperitivo, num texto que publicou há 110
anos a propósito das festas dos estudantes a S. Nicolau que, se têm uma
madrinha (a D. Aninhas), têm em Meira o padrinho, já que foi ele que as baptizou.
João de Meira foi o primeiro
historiador das festas nicolinas. Uma das suas fontes de informação foi António Joaquim de
Almeida Gouveia, várias vezes pregoeiro entre 1831 e 1844, que ainda estava
vivo quando o texto que aí vai foi escrito.
O S. NICOLAU
(Carta de um velho Frade à Comissão
dos festejos escolásticos)
Primum omnium... Dominus vobiscum,
briosos estudantes.
Não estranheis que eu de princípio à
missiva com uma saudação denunciadora da leitura do belo livro de
Ruth. É hábito inveterado.
Curvado ao peso do mais de dois carros
de invernos, sempre tomado de achaques, pois a velhice é doença =
senectus est morbus = sinto-me remoçar com a notícia de vos
terdes congregado para o efeito de mais uma vez a Academia, que
dignamente representais, dar solene testemunho do sou apego às
velhas tradições. Louvores, muitos louvores vos sejam dados.
Sois todos muito novos, no que me
informam, porque já não posso arredar pé desta cela onde há
muitos anos vivo a curtir saudades dos belos tempos anteriores à
execução da lei de 34 com que a Senhora Dona Maria da Glória
contemplou todos os meus irmãos em Cristo; por isso mesmo porque não
sei se além do António Joaquim de Almeida Gouveia, relíquia dos
vossos festejos, sobrevive mais algum velho entusiasta dos folguedos
escolásticos, vou lembrar-vos. se a memória me for fiel, o que no
meu tempo mais contribuía para o seu esplendor.
Convém primeiramente saber-se que o
elemento eclesiástico, de harmonia com a lei Estatutária, teve
sempre o primeiro lugar na celebração dos festejos escolásticos
vimaranenses.
Eu, o Frei José da Luz, há anos
falecido na sua casa da Rua Nova do Comércio, o Frei Inácio Lago,
do Arco de S. Bento, e vários outros filhos Ordens de S. Domingos,
S. Francisco e S Jerónimo, nem uma vez deixámos de imprimir aos
festejos escolásticos todo o brilho possível.
Outra geração de eclesiásticos
ilustres, os padres Sebastião Leite, José Sampaio (O Mico), Campo
Santo, Joaquim machado, etc., associados a numerosos estudantes ,
filhos de distintas famílias, como Joaquim Inácio de Abreu Vieira,
José Ferreira Mendes da Paz, João Pinto de Queirós, António
Chaves, dr. Silva Ribeiro, etc., etc., seguiram-nos as pisadas com
igual fervor, tendo até, num só ano, levantado em Guimarães dois
pinheiros anunciadores dos festejos que, afinal, por motivo de cisão,
entre o grupo, sofreram larguíssima interrupção. É sempre este o
resultado dos excessos. excessos.
Nada pois de excessos, meus queridos
jovens, se quereis dar vida longa ao S. Nicolau. No meio, só
no meio está a virtude = in medio virtus =. Fugir dos
extremos, foi sempre a minha norma e a de todos aqueles que desejavam
prosseguir na senda gostosamente encetada.
Seja, pois, também a vossa, não vos
abalançando ao que hoje, por um bambúrrio de sorte, podereis fazer,
e que amanhã outros não farão.
Pinheiro, magusto, pregão, cavalhadas
e danças, tudo se poderá efectuar à antiga com o aplauso e
cooperação do nobre povo de Guimarães, tão cioso das regalias da
sua terra.
Como novos que sois, e portanto
inexperientes, devereis desde já agregar à vossa comissão os
cavalheiros a quem se deve a ressurreição dos festejos que muitos
julgaram para sempre extintos. Destes ocorre-me ouvir falar nos nomes
do Padre Roriz, Jerónimo Sampaio, José Pina, Queirós, Álvaro e
Acácio Machado, João Barbosa, Leão Martins, Luís de Freitas, e em
muitos mais.
Ora pois.
O tempo arrefeceu bastante e o meu
reumático a agravou-se a ponto de me torturar com dores. Eis os
motivos por que ponho ponto por hoje esperando melhores dias para
coordenar os curiosíssimos apontamentos que possuo referentes ao S.
Nicolau, desde a sua origem, os quais desejo oferecer impressos à
vossa Academia.
Só então podereis melhor conhecer
quão alegre era a virtude antiga, despida dos fingimentos que as
modernas teorias autorizam, tão opostas à firmeza de crenças e
pureza de sentimentos.
Ai! tempos, tempos...
Vale.
Do vosso antigo colega,
Frei Athanagildo Calpurniano.
Independente, Guimarães, 20 de Novembro de 1904
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