Efeméride do dia: A procissão do caga-ratos


A Colegiada da Oliveira em dia festivo no início do século XX.

5 de Junho de 1531
Em vereação "acordaram que se apregoe que a procissão saia em dia do Corpo de Deus cedo e às horas que o duque nosso senhor e assim o prior mandam e que os almotacés ajudem neste  ano a reger com suas varas a dita procissão; e que a carreira do boi se dê nos jogos, na véspera para que não façam distúrbios (?) por sua míngua."
(João Lopes de Faria, Efemérides Vimaranenses, manuscrito da Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, vol. II, p. 237 v.)
Há notícias da celebração do Corpo de Deus em Guimarães desde, pelo menos, o início do século XIV. Desde cedo que, mais do que uma manifestação de piedade e de acção de graças, é uma festa der raiz popular a que a presença das autoridades religiosas, civis e militares confere grande solenidade. Como notou o Abade de Tagilde, “falto de quaisquer espectáculos públicos”, o povo “aproveitava no culto religioso ensejo para folgar, como acontece ainda hoje em muitas terras”. A procissão do Corpus Christi era uma manifestação de grande aparato e imponência, que saía à rua na segunda quinta-feira depois do domingo de Pentecostes (60 dias depois da Páscoa).
Várias figuras, inspiradas na mitologia pagã e popular, marcavam presença na procissão: o Rei David, inicialmente suportada pelos sirgueiros (mesteirais que trabalhavam em obra de fio), que davam corpo a uma folia, o Império do Rei David, onde se recriava a corte daquele rei dos judeus que tinha o dom da música e da poesia; a Serpe, feita de madeira, com vestido e coroa, e que era trazida pelos pescadeiros do Hospital, onde se guardava durante o ano, acompanhada pelos cavalinhos; a Justiça, que era dada pelos espingardeiros e que deveria ser “muito bem ornada”.
As danças, os jogos e as folias eram, originalmente, custeados pela Câmara, passando depois a maior parte esse encargo para os homens dos ofícios. Eram elas:
A Judenga, que satirizava os judeus e que era muito popular nas festas portuguesas, molestava os cristãos-novos, que conseguiram junto do rei, em 1591, uma provisão que a extinguiu. Em Guimarães, essa provisão nunca se aplicou, por se entender que a judenga, como escreveu a Câmara, era muito do serviço de Nosso Senhor e bem da cristandade”. Em 1645 seria extinta, desta vez a pedido dos moradores da vila. O texto desse petição ajuda a perceber como seria aquela paródia que se metia pela igreja adentro:
“(…) a dança consta de quinze até vinte figuras de homens e mulheres disfarçados com máscaras e levam uma cabra viva e outras figuras de vulto pintadas; e com grandes alaridos e gritos entram pela igreja de onde há-de sair a procissão, pervertendo os ofícios divinos e inquietando toda a gente, depois saem com a procissão levando após si muita parte do povo, que, como é o seu desígnio fazer e dizer mal de algumas pessoas, os vão seguindo pelas ruas até chegarem a algumas portas a que o ódio pretende afrontar e nelas fazem muitos meneios e acções e gritos e alaridos com que pretendem infamara muitas pessoas nobres, e deste modo vão pelo meio da procissão de porta em porta até a procissão recolher e depois se põem na praça da dita vila, nomeando muitas pessoas e lendo loas infamatórias afrontando muitas famílias, e assim mais lançam da torre da dita igreja uma bezerra por uma corda abaixo e estão todos de joelhos batendo nos peitos, fazendo muitas canções e cerimónias mal soantes (…).”
A Mourisca era uma dança em que participavam vinte rapazes, os mourisqueiros, com trajes a condizer com o respectivo tema e com varas a arremedarem lanças, que dirigidos por um rei que dava o sinal para que se iniciasse a dança (uma espécie de combate ritmado a toques de tambor). A mourisca dava as alvoradas junto às casas dos vereadores.
O Império de Maria Garcia, dança promovida pelos hortelãos, em pagamento de uma promessa feita quando as suas hortas foram destruídas por uma bicha. Levava dança e tangeres.
A Dança da Pela estava a cargo das padeiras. Seria uma bailado em que mulheres carregavam meninos aos ombros, que acompanhavam com o corpo os passos da dança.
A Dança dos instrumentos era da responsabilidade dos comerciantes de panos, em substituição, contra a vontade daqueles, da mais antiga obrigação que eles tinham de dar tochas para acompanhar a procissão. Era composta por oito rabecas, duas violas e duas harpas.
A Dança das ciganas competia aos ourives e aos tosadores (tosquiadores).
As Danças dos azeiteiros, dos tendeiros (uma “dança de fitas”), das pescadeiras (com dez figuras, entre as quais dois tangedores), dos vendedores de panos de linho (dezasseis figuras, fora os tangeres, com muito aparato e bem vestida) eram custeadas mesteirais que lhes davam os nomes.
Por vezes, os ofícios a quem incumbia custear danças, conseguiam que essa obrigação fosse substituída pela oferta de tochas para alumiar a procissão.
As folias eram formadas por grupos de pessoas com cantares ao som de tambores, pandeiros e violas. Eram representações de carácter burlesco que eram contratadas pela Câmara.
Na procissão incorporavam-se também os três charameleiros contratados anualmente pela Câmara, tocando as suas charamelas (espécie de flauta rústica ou buzina). E não faltava a encamisada (um género de mascarada a cavalo, que veremos também nas festas dos estudantes de Guimarães a S. Nicolau).
O carácter manifestamente carnavalesco da generalidade dos números que integravam a procissão do Corpus Christi, sobrepunha-se à sua dimensão primordial de solenidade religiosa. Na primeira metade do século, a pedido da nobreza e do povo, as danças e folias foram abolidas na procissão, sendo substituídas por andores, que fora acrescentados aos que já participavam no cortejo. O Abade de Tagilde identificou, nos documentos do Arquivo Municipal, os seguintes:
Santa Catarina – inicialmente levado pelos azeiteiros, ficou a cargo dos cereeiros a partir de 1642.
S. Jorge – Apresentado pelos ferradores, seleiros e alquliladores, que custearam a imagem. Seguia a cavalo, tendo uma sela própria.
Santa Teresa – Levado pelos pentieiros e ofícios similares.
S. Dâmaso – Da responsabilidade dos vendeiros.
S. João Baptista – Preparado pelos cutileiros, bainheiros e fiteiros, que foram incumbidos de fazer a imagem.
Estes andores foram eliminados em 1797, apenas se conservando, daí em diante, a presença na procissão da imagem de S. Jorge a cavalo.
As celebrações do Corpus Christi concluíam-se com uma corrida de touros, que acontecia da parte da tarde. Os açougueiros entravam com os touros. As entradas da praça eram fechadas om cancelas, que eram vigiadas por moradores das freguesias rurais. A praça era o Toural, que, no final do século XVIII, seria substituído nessa função pelo terreiro da Misericórdia.

O Coronel António de Quadros Flores publicou no Notícias de Guimarães, na década de 1950, uma série de crónicas, depois editadas em livro, sobre a Guimarães em Guimarães na viragem de oitocentos para novecentos. É ali que encontramos um texto em que nos conta como, em ano incerto, as salvas de tiro da tropa que faziam parte do programa da celebração do Corpus Christi provocaram um incidente que está na origem do nome que o povo passou a dar a este festa. Aqui fica:

No Largo, ia um burburinho naquela multidão já faladora, a ajeitar-se onde pudesse presenciar o mais importante do dia – a revista do S. Jorge e as descargas.
Por aqui e acolá ouvia-se o pregão das mulheres ajoujadas dos cântaros revestidos de cortiça e folhas de hera, a apregoar – “quem quer limonada, quem quer água fresca”.
Afinal esta vida moderna, de circulação regulada, de tanto estrondear desses monstros mecânicos, abafou os pregões que por essas ruas e largos anunciavam a sardinha, as castanhas, o carvão e tantas outras necessidades da vida nas várias épocas do ano.
Já muitos me esqueceram, mas ainda estou a ouvir ali pelo Largo de S, Tiago, onde era o depósito. e nas outras ruas, a voz estridente, creio que da Manaca, anunciando o carvão – “É de canudo, a sete vinténs”, no bom tempo em que havia vinténs.
Ou a Maria Sardinheira, obesa, com a canastra, no de “são cuma truitas, das boas”. e acrescentava “meninas, a catro, são a catro ó vintém”, o que já era considerado uma calamidade as quatro sardinhas a cinco réis cada uma!
A mulher das castanhas cosidas com erva doce, com o panelo envolvido de trapos, no de “meninas quentes e grandes”, a meia dúzia por dez réis.
O galego da roda, que algumas vezes se vê aqui pela aldeia, mas já não é galego, com a flauta de capador a anunciar “amola tesouras e navalhas” e a deitar “gatos” na louça partida.
Tantos outros já esquecidos e agora transformados em portadores de tabuleiros de rodas pneumáticas, o que dá vontade de, se fosse possível, ressuscitar o Antoninho “Triques” num triciclo motorizado com alto-falante a anunciar “meninas, quentes e grandes; quem me estreia”, muito mais pitoresco que esses estrídulos. impertinentes e maçadores anúncios da lotaria, que foram os únicos pregões que ficaram.
Ali pelo café do “Púcaro”, até à loja do Américo, na Senhora da Guia, OS mais sedentos iam emborcar “meia”, de caneca em punho está em mão. - isto no «Púcaro», e do engarrafado que saía espumante, como Champagne, no Américo, à espera do momento solene.
Os preparativos das descargas faziam-se primeiramente na parada do Regimento, antes da tropa sair, pela comparência dos quarteleiros com um “faxina”, que traziam os cunhetes de bala simulada, previamente distribuídos da arrecadação geral pelo cabo Tomás.
Três cartuchos por praça, que metiam na cartucheira e consistiam do “envorve” de latão com bala de madeira, perfurada até certa altura, para se desfazer ao sair do cano da espingarda.
Naquele tempo, e com aquelas espingardas, uma descarga, quer fosse de regozijo, como nessa ocasião, quer fosse de pesar, nos funerais, era não só muito mais estrondosa, como de muito maior efeito, pela carga da pólvora ser maior, o que produzia mais barulho, e pelo fumo que espalhava e ambiente guerreiro que incutia.
O S. Jorge, com o cerimonial da primeira revista, passava em frente da tropa, que lhe prestava a continência do estilo, e ia postar- se junto do tanque que desapareceu.
Depois disto é que aquela gente que enchia o Largo se preparava para as descargas, e afastava-se da frente da tropa até às grades da Colegiada, e só alguns com ares de mais valentes ficavam ali pelas alturas do tanque e os garotos trepavam às grades.
A primeira voz, a de «sentido», dava-se ainda no meio do marulhar do povo que se arredava da frente do Batalhão, mas ao primeiro movimento um silêncio súbito, de expectativa e ansiedade, tapava a boca àquela multidão.
“Pra manejo de fogo preparar”, ouvia-se na extremidade do Batalhão, onde duas ordenanças seguravam pelo freio os cavalos do Major e Ajudante, que não estavam habituados a estas folias. Os soldados raziam um “oitavo à direita” e os da segunda fileira iam ocupar os intervalos dos da. primeira, e cruzavam a arma, abriam a culatra, o que já de si ruidoso, como que um matraquear, lançava o alarme; abriam a cartucheira e “com o dedo polegar e o indicador extraiam um cartucho”, isto era o que dizia a “ordenança”.
A seguir à voz, mais enérgica. de “carregar”, introduziam o cartucho na câmara e fechavam as culatras com novo matraquear. Ora nesta altura, os mais medrosos, principalmente as meninas pelas janelas, tapavam os ouvidos e encolhiam-se todas. Depois “apontar” que, pela ordenança, era um movimento muito complicado, de conter, metendo, desde a descrição da “linha de mira”, até à de levar o gatilho ao primeiro entalhe com a respiração suspensa, para firmar a pontaria no “alvo”, que aqui poderia ser um garoto mais afoito que só seria fuzilado “in mente”. Nesta ocasião os tais medrosos fechavam os olhos, e algumas meninas fugiam das janelas até que, finalmente, e perante o silêncio profundo daquele gentio. ouvia-se a ansiada voz de “Fogo!”.
“Brrrrum!...”
Às vezes calhava bem e as descargas saíam correctas, como se esperava; outras vezes, ou por nervosismo de qualquer soldado, ou por não se ouvir distintamente a voz de “fogo”, aquilo desandava num fogo de vistas, mais ou menos como uma metralhadora.
Uma nuvem de fumo e os garotos, logo que os soldados tornavam a carregar, metiam-se por entre as pernas de toda a gente a apanhar os cartuchos que caíam ao chão pela troca de pontapés, que as praças lhes davam na defesa do que tinham de entregar na severa fiscalização do cabo Tomás, depois lá no quartel, antes do toque de “destroçar”.
Isto repetia-se mais duas vezes, o povo acorria de toda a parte, a tropa preparava-se então, com o “quatro à direita” e “coluna de marcha” e “ordinário marche” para regressar, com uma marcha guerreira, ao seu quartel.
Ora dizia-se, que eu não vi, e era na idade em que tapava os ouvidos, fechava os olhos e fugia da sacada da casa de minha Avó nessas ocasiões de descargas, que de uma vez, depois do estrondo da primeira descarga, o S. Jorge estremeceu, pareceu ter uns momentos de vida em cima do cavalo inquieto, apesar de seguro por dois valentes pulsos, e saíram de dentro dele umas ratazanas que aproveitavam a complacência do Santo, todo o ano guardado na capela do Tribunal, e que nós espreitávamos pelo buraco da fechadura, para lhe pedirem abrigo à prole e foram surpreendidas, sem tempo de escaparem, passaram revista à tropa, receberam as homenagens, mas não puderam resistir à última manifestação marcial, e safaram-se perseguidas pela garotada até ao primeiro bueiro onde se meteram.
Coronel António de Quadros Flores, Guimarães na última quadra do romantismo, 1898-1918, Tipografia Ideal, 1967, pp. 34-35

E eis como a procissão mais solene que se realizava em Guimarães desde tempos imemoriais ficou a ser chamada pelo povo como a procissão do caga-ratos

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