"A Cidade", por Raul Brandão (4)




A Cidade
(conclusão)
Às mulheres dava o Pita conselhos práticos, penetrados de sabedoria, e que elas escutavam com avidez. Sabia interessá-las Nele encontravam sempre um amigo discreto e conceituoso: por vezes tinha, velho armário onde se encontra de tudo, remédios para males amorosos, filtros que entontecem e perturbam; meias coroas para ocasiões de desgraça e, sobretudo, uma grande benevolência por todos os vícios e por todos os crimes. Passava-lhes a mão pelo queixo, beijava-as ao pé da orelha, e noites, quando os amantes saíam, rompia ele também de dentro dum armário, com palavras que alucinam e põem vibrações quase dolorosas nos nervos das raparigas.
Era-lhes indispensável: escrevia-lhes cartas de amor alucinantes e ia entregá-las em troca do vil metal; consolava-as quando Alphonse fugia; sentava-as no colo e desfiava o rosário do vício, com o olho lúbrico a apalpar-lhes o colo. Sabia receitas para tornar a pele macia e rescendente, os seios duros e altos, o olhar prometedor de inéditos deboches adorados que quebram, afligem e são deliciosos como abismos negros onde a gente se despenha.
Assim, como ele lhe perguntasse pasmado, porque e que as mulheres o adoravam, o Pita passou a mão pela calva, acendeu uma antiga ponta de charuto e falou conceituosamente:
— O pequename, meu amigo, é afinal fácil de levar: basta lisonjear-lhes o vício. Na alma de cada mulher há sempre um pequenino diabo escarlate. Basta acordá-lo se ele dorme; basta saber-lhe dizer palavras que o façam saltar vivo e astuto…

Às abandonadas, tristes, em choro, não lhes quebro a ilusão da volta do Amante, mas lentamente lhes sugiro que há carícias extraordinárias e de que eles se esqueceram, beijos que sugam a alma e desvairam, braços que sabem enlear como cobras e tudo esquecer: a amargura da vida, os dias sem dinheiro, a desonra e os credores até!... Às que amam digo-lhes que ainda não é bastante, que a única coisa boa da vida é o Amor e que elas não têm nos olhos nem na boca o sorriso extasiado de quem é verdadeiramente, fundamente adorada. Às mulheres que têm o risco da primeira ruga na face e a ranhura do desgosto de começar a envelhecer na alma, conto-lhes que o Amor é imortal e o oiro tudo
pode. O amante que sabe fingir e que se paga a quem se atira com desprezo o dinheiro, tem beijos, dum raro sabor e nos seus braços passam-se horas esquecidas, que a ilusão tece de oiro e de púrpura... E a todos ensino que o que do amor é necessário saber-se espremer é o Metal dos velhos, as notas do
banco dos ricos que amam as rapariguinhas perversas e lindas. Eis o meu segredo, vê tu! Banal como uma verdade sólida e antiga.

Raul Brandão.
O Micróbio, n.º 34, 14 de Março de 1895, pp. 70-71

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