Barcelos, Guimarães e a Conquista de Ceuta




Eis a tradição de Ceuta e do castigo infligido aos de Barcelos a favor dos de Guimarães, num curioso relato de um barcelense, de acordo com um livro de viagens dos primeiros anos do século XX:

Mais tarde, quando regressávamos já ao hotel, admiramos também a casa da Câmara, um grande edifício remoçado, e essa circunstância deu ensejo a que Veríssimo nos narrasse certo castigo infligido as edilidades de Barcelos por D. João I. É uma dessas imaginosas penalidades em que a fantasia antiga, sem peias de códigos, se comprazia tantas vezes.

O Mestre de Avis, tendo acabado de tomar Ceuta, confiou aos homens de armas de Barcelos a defesa de certo ponto da muralha. A ordem não devia parecer assustadora a guerreiros ainda encorajados pelos entusiasmos de uma vitória recente. Não foi porém assim – e em certa ocasião os barcelenses, amedrontados pelos desesperados ataques da moirisma, abandonaram o seu posto de honra e largaram a fugir desordenadamente, como se todo o Islão, com Maomé a frente, tivesse invadido a praça de cimitarra erguida.

Vendo isto, os guerreiros de Guimarães, que defendiam um posto vizinho, atroaram o brônzeo céu da África com os brados da sua indignação; e, dividindo-se em dois grupos, tão bravamente defenderam toda a muralha que nada lucrou Mafoma com a vergonhosa debandada dos barcelenses. D. João I, informado do caso, ordenou que daí em diante fossem os vereadores de Barcelos varrer, todos os anos, as pragas e os açougues de Guimarães...

Durou quase oitenta anos essa ominosa penitência. Nas vésperas das festas camarárias de Guimarães, nove vezes por ano, lá iam os infelizes representantes do município barcelense com um barrete vermelho, banda da mesma cor, um pé calçado e outro descalço, à cinta a espada envergonhada, nas mãos uma ramuda vassoura de giesta, limpar as imundícies da vila de Afonso Henriques. No fim, concluída a tarefa, iam entregar aos vereadores adversos, em sinal de servidão, o barrete e a banda. Alguns destes bodes expiatórios do delito de seus avós eximiam-se ao cumprimento da pena, e pagavam, de cara alegre, a grossa multa em que, pela falta, eram condenados.

Por fim, aquele místico duque D. Jaime de Bragança, que espostejou a mulher e o pajem Alcoforado, não achando já quem quisesse ser vereador na sua boa vila de Barcelos, ofereceu à Câmara de Guimarães as freguesias de Cunha e Ruilhe para desempenharem aquele serviço. A proposta foi aceite – e Barcelos respirou alfim, livre para sempre das vassouras e das sujidades vimaranenses.

Veríssimo condimentou esta narrativa com grande número de pormenores, reconstruindo o diálogo com uma saborosa ênfase arcaica. Também amesquinhou, com desculpável zelo patriótico, a acção heróica dos vimaranenses em Ceuta. Na sua opinião, esses bravos acutiladores da mourisma não passavam de ardilosos tecelões de intrigas...

– Intrigantes... Invejosos... Sempre assim foram!... Quando nós arranjámos o milagre das Cruzes, logo eles arranjaram o da Oliveira... Eu não quero dizer mal de ninguém, mas a verdade é a verdade!

– Mas, na sua opinião, os guerreiros de Barcelos abandonaram a muralha de Ceuta, ou não? – inquirimos, divertidos.

– Não, senhores... Cá na minha, foram os de Guimarães que os enganaram, dizendo-lhes que el-rei os estava a chamar. Eles então foram, está claro! Uma pessoa, quando o rei chama, deve ir logo!

D. João de Castro, Jornadas no Minho – Impressões, aventuras e travessuras de dois excursionistas meridionais, Ferreira & Oliveira, Lda. - Editores, Lisboa, 1906, pp. 335-337.

Comentar

4 Comentários

Samuel Silva disse…
Estas freguesias de Cunha e Ruilhe são as mesmas que hoje fazem parte de Braga?
Samuel Silva disse…
Parece claro o mito que envolve toda essa parte da história.

O que desconhecia era essa extensão do concelho. Até porque hoje Guimarães termina numa freguesia bem longínqua dessas.
De facto, o concelho de Guimarães já foi mais extenso do que aquilo que é hoje hoje. Na Idade Moderna, até à reforma administrativa de 1834, Guimarães tinha 105 freguesias, que se encontram discriminadas, por exemplo, na Corografia Portuguesa, do Padre Carvalho da Costa, das quais algumas foram extintas ou, na sua maior parte, passaram a integrar o territórios dos concelhos limítrofes. Naquele tempo, Cunha e Ruílhe podiam ser descritas como um enclave vimaranense no território em que o concelho de Braga confina com o de Barcelos.

[Quando, acima, dizia que a tradição é de duvidosa comprovação, referia-me à tradição de Ceuta, porque o costume de os de Cunha e de Ruílhe virem varrer as ruas de Guimarães existiu mesmo, não havendo dúvidas quanto a isso. Apenas não se sabe qual a razão que está na origem desse vexame público.]