Pelo local onde esteve originalmente implantada, bem como pela sua iconografia, estamos em crer que a estátua do Guimarães foi mandada fazer com o propósito de dar corpo a uma figura tutelar que simbolizasse a então vila de Guimarães. As fontes mais antigas que nos falam desta peça referem-se-lhe como “a figura de Guimarães” ou “o Guimarães”. A esta luz, a não ser por obra de um inusitado sentido de auto-ironia dos vimaranenses responsáveis pela encomenda da obra, resulta difícil de entender a sua interpretação enquanto representação simbólica das duas caras, com toda a carga pejorativa desta expressão, dando razão a uma suposta duplicidade de carácter de Guimarães e dos vimaranenses. Parece-nos óbvio que a associação às duas caras surgiu depois da obra ter sido colocada na Casa da Alfândega, por efeito de uma analogia que nada teve a ver com a intenção inicial que lhe deu origem.
Por força da dimensão depreciativa da tradição das duas caras, têm surgido algumas tentativas, tão imaginativas quanto forçadas, de ocultar a tradição ou de a pintar com cores mais simpáticas para a cidade e os seus cidadãos, associando-a a uma lenda que fala de um suposto feito militar das hostes vimaranenses na conquista de Ceuta, no reinado de D. João I. Segundo esta lenda, depois de tomada aquela praça marroquina, o rei terá distribuído a tarefa da defesa dos diferentes troços da sua muralha pelos contingentes de cada uma das terras que contribuíram com soldados para a conquista, protegendo-a contra o previsível contra-ataque dos muçulmanos. Como os de Barcelos teriam fraquejado nesta tarefa, os de Guimarães terão assegurado a defesa de dois troços, juntando ao que lhes tinha sido destinado aquele que os de Barcelos teriam deixado desguarnecido. De acordo com esta tradição, o rei teria depois ditado o castigo a aplicar aos de Barcelos, para toda a eternidade: desde então, dois vereadores barcelenses viriam varrer as ruas de Guimarães, em vésperas de dias festivos, com um barrete vermelho na cabeça e um pé descalço e outro calçado. Mais tarde, já no século XVI, a Vila de Barcelos teria conseguido isentar-se da servidão, logrando transferi-la para os moradores das freguesias de Cunha e Ruilhe, que então teriam sido desanexadas de Barcelos e entregues a Guimarães. Desde 1980, temos visto defendida uma explicação, nunca antes avançada por qualquer historiador, segunda a qual as duas posições que os vimaranenses teriam defendido em Ceuta estariam representadas simbolicamente pelas duas caras da estátua do Guimarães.
É inegável que a obrigação vexatória, de que fala a tradição, foi imposta às freguesias de Cunha e Ruilhe, que, anos a fio, lutaram nos tribunais para dela se livrarem. Comprova-o o Tombo dos Bens da Câmara de Guimarães de 1735, onde constam “três barretes de rabo comprido feitos à mourisca e três faixas, tudo de baeta vermelha, com que os moradores das duas freguesias de S. Miguel de Cunha e São Paio de Ruilhe, cada uns no seu giro, se preparam e compõem quando vêm varrer a praça e terreiro de Nossa Senhora da Oliveira e açougues desta vila nas festas da Câmara, cuja varredura fazem nos próprios dias das mesmas festas pela manhã, com um pé descalço e o outro calçado e a espada metida na faixa que cada um ata pela sua cinta às avessas pela parte esquerda e o barrete metido na cabeça com o rabo estendido pelas costas abaixo”. Porém, se esta obrigação existiu, nada permite concluir que algum dia tivesse sido imposta às gentes de Barcelos, nem que Barcelos tivesse entregue Cunha e de Ruilhe a Guimarães para se livrar do vexame. Por uma razão simples e indesmentível: aquelas freguesias já pertenciam ao concelho de Guimarães quando foram feitas as inquirições de 1258, no reinado de Afonso III, muito antes da conquista de Ceuta, que só teve lugar em 1415. Foi por isso, e por ter demonstrado que em Ceuta a defesa das posições portuguesas não foi feita como consta na lenda, que o historiador vimaranense Alfredo Pimenta qualificou esta tradição como uma história da carochinha.
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