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A cultura é o espaço ideal para o lançamento de pontes entre o local e o universal. Um projecto com a dimensão que terá, necessariamente, uma Capital Europeia da Cultura deve contribuir para se poder observar o mundo através das janelas de uma cidade. As temáticas a abordar na Capital Europeia da Cultura com epicentro em Guimarães devem ser capazes de estabelecer essa relação. Havendo a intenção, já anunciada, de não apostar em produtos culturais pré-formatados, adquiridos com recurso a cardápios pré-existentes e entregues em regime de chaves-na-mão, haverá que dosear, em porções adequadas, o conhecimento com a imaginação e a criatividade ,para se encontrarem as temáticas capazes de enlaçarem a identidade local na universal ede irradiarem manifestações da cultura universal a partir da perspectiva local. Já antes aqui se avançaram algumas sugestões com tal propósito. Aqui fica outra, susceptível de ser desdobrada em diferentes produtos culturais.
Em Guimarães, porventura mais do que em muitos outros lugares, há uma propensão ancestral para a apropriação paródica e irreverente da realidade, presente em inúmeras manifestações da cultura local, das Nicolinas à Marcha Gualteriana, e bem reflectida na imprensa de Guimarães, onde não faltam títulos onde a sátira e o humor se assumiam como os principais veículos de crítica social e de costumes, não raras vezes apimentados pelo vernáculo corrosivo e algo obsceno, tão presente na expressão oral dos vimaranenses, independentemente das suas condições sociais.
É nesta tradição que podemos encontrar a ancoragem de uma literatura de satírica e de crítica social, onde se filia o teatro de Gil Vicente, mas que teve outros cultores. Basta lembrar que Guimarães foi o berço de António Lobo de Carvalho, o “Lobo da Madragoa”, sobre quem Natália Correia escreveu, na sua "Antologia da Poesia Portuguesa Erótica Contemporânea" (3.ª edição, 1999, pág. 188):
Lobo de Carvalho não só merece um lugar de especial destaque entre os satíricos portugueses, como deve o seu nome, obscurecido pela ignorância ou pelo preconceito dos cronistas literários, figurar na galeria dos relevantes poetas portugueses, posto que, pelo quilate poético, superou a circunstancialidade da sátira. Raramente o escárnio fescenino teve ao seu serviço um engenho formal e uma imaginação satírica em tão perfeito equilíbrio. O lirismo negro português é-lhe credor das melhores páginas do género que se não desbrilham quando confrontadas com a de Bocage, oferecendo um cunho mais popular onde o cantor de A Manteigui revela um maior arrebatamento poético.
2012 pode ser uma oportunidade para recolocar António Lobo de Carvalho no lugar que é o seu por direito no contexto da poesia de língua portuguesa. À volta do seu nome e de outros autores que cultivaram o mesmo género de poesia satírica e erótica, é possível construir um conjunto de iniciativas relevantes, capazes de enriquecerem o programa da CEC. Penso, por exemplo, em ideias que associem o nosso Lobo ao grande Gregório de Matos, escritor baiano do século XVII, filho de um vimaranense, cuja ousadia literária lhe valeu o cognome de “Boca do Inferno”, ou a Bernardo Guimarães, escritor brasileiro (cujo nome não deixa lugar para engano quanto às suas raízes), o romancista consagrado, autor de A Escrava Isaura, e o poeta maldito, de cuja pena saíram poemas como A Origem do Mênstruo ou A Orgia dos Duendes.
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