Vista da Penha, numa fotografia do início do século XX. |
Na década de 1920, o futuro
escritor Joaquim Pacheco Neves (1910-1998), natural de Vila do
Conde, estudou em Guimarães, onde fez o Liceu, antes de ingressar
Universidade do Porto para se formar em medicina. Nunca esqueceu a
sua passagem por Guimarães, onde adquiriu a condição de nicolino,
que lhe deixou memórias que resistiram pelas décadas adiante, e que
relembrou em 1881, num
texto que já aqui publicámos.
Anos
antes, ainda na década de 1960, Pacheco Neves publicou um outro texto em que
desfiava memórias do seu tempo de Guimarães, em que descrevia uma
cidade bem diferente daquela que hoje conhecemos e relembrava as
expedições à Penha, e o seu deslumbramento “com os penedos
ciclópicos semeados no cabeço ou suspensos no abismo, aquele
arranjo telúrico duma convulsão espasmódica da crosta terrestre,
contrastava com a paisagem serena do vale, onde a cidade branquejava,
e com a mancha esverdeada que te estendia para além de S. Torcato”.
Nesta sua revisitação à Penha, o escritor deixa uma sentida homenagem a José de Pina, que foi seu professor e se tornou seu amigo, um dos “homens mais bondosos e mais simples que encontrei na vida”.
A
Guimarães do meu futuro
A
Guimarães do meu tempo de académico liceal não tinha a área nem o
aspecto tentacular dos dias de hoje — vivia apinhada em redor da
Nosso Senhora da Oliveira, à sombra das suas pedras seculares, e
estendia-se, num esforço que não conseguia dominar completamente os
espaços vazios, para o Campo de Feira, onde mercadejavam as mais
variadas espécies agrícolas, e para a estação do caminho de
ferro, onde as árvores bracejavam solitárias de encontro aos muros
sem cal.
Em
redor do Castelo havia um punhado de edificações canhestras, e os
Paços dos Duques de Bragança eram maculados pela presença dum
quartel pouco respeitador dos seus claustros e da sua trabalhada
silharia. O D. Afonso Henriques mostrava uma feia mas altiva catadura
no meio do Toural, em frente da igreja de S. Pedro, e a Rua de S.
Dâmaso, marginada de casas sombrias e misteriosas, afunilava um
trânsito que então não existia. O campo dr futebol era num largo
terreiro em frente do cemitério, balizado por um enorme penedo feito
rolar da Penha, segundo a tradição, pelo esforço ingente de alguns
dos nossos avoengos...
Aluno
do Colégio do Padre Zé Maria, antes da fusão com o Internato
Municipal, os meus passeios predilectos, quando o tempo estiava e o
sol brilhava com intensidade nas alturas, ou eram à Penha, que
descia a corta-mato numa competição que o coração aguentava sem
dar mostras de fadiga, ou ao Convento da Costa um labirinto de buxo
fazia as minhas delícias infantis, ou para a sombra das carvalheiras
que, a caminho de Fafe, ainda hoje são acolhedoras e convidativas.
Mas
era para a Penha que os meus passos se dirigiam com mais desembaraço,
se acontecia encontrar um perfeito do Colégio de feição e com o
gosto de andarilho. Aquele
romper para diante por caminhos que nos conduziam às alturas,
sem as comodidades dum transporte mecânico, não era para a maior
parte dos contemplativos vigilantes do colégio mais dados às
musas, como um Sr. Bezerra, com quem embirrava o meu bocado, ou às
latinadas da Eneida, como um Padre Arménio. que depois veio a ser
professor do Liceu. Poucos se dispunham à caminhada. Mas quando eu e
os outros alunos encontrávamos algum disposto a aturar o nosso
capricho, quando chegávamos lá acima cansados, mas satisfeitos, era
um deslumbramento. A agressividade rude da Penha, com os penedos
ciclópicos semeados no cabeço ou suspensos no abismo, aquele
arranjo telúrico duma convulsão espasmódica da crosta terrestre,
contrastava com a paisagem serena do vale, onde a cidade branquejava,
e com a mancha esverdeada que te estendia para além de S. Torcato. O
Ave serpenteava em lances discretos por entre modestos outeiros, e
uma cortina de montes fechava a largueza dos olhos na serrania do
Gerês e da Falperra, onde o Sameiro mostrava a sua cúpula branca no
azul ferrete do céu.
Para
quem conhecesse o terreno e soubesse identificar os lugares, o
divertimento transformava-se numa curiosidade que arrancava
exclamações dê prazer naqueles que pela primeira vez viam de longe
a sua terra natal. Pevidém, Fafe, o alto da Lixa, o mar da Póvoa,
eram apontados pelo dedo conhecedor dos mais experientes e trazidos
ao proscénio como uma miragem criada pela nossa imaginação
delirante. Mas víamos, víamos tudo e o mais que nos dissessem, com
a credulidade própria duma mocidade confiante, e a certeza de que
não havia paisagem de maior beleza do que aquela que os nossos olhos
viam.
Satisfeita
a sede panorâmica dos mais contemplativos e refeito o nosso cansaço
de montanhistas juvenis, dispersávamos em grupos para explorarmos os
mistérios da Penha, com as suas grutas, as suas passagens
escondidas, o fluir das suas nascentes refrescantes. E ficávamos
maravilhados quando deparávamos com uma massa granítica suspensa
num equilíbrio precário, sobre um rochedo de pequena base ou
ouvíamos soar, como se de bronze se tratasse, a pedra percutida por
uma pancada seca. Não havia, nessa altura, grandes e convidativas
sombras nem os arranjos turísticos dos dias de hoje. Na sua rudeza
agressiva, a Penha era ainda a Natureza não deformada pelo homem,
com uma capelinha nascida no seio da montanha, uma igreja com o
símbolo do Calvário erguido ao alto e algumas edificações que se
perdiam no confronto com a massa granítico semeada a esmo na
superfície do monte. Não tinha os miradouros que hoje te debruçam
sobre a cidade, porque toda a Penha era um miradouro. Mas a amplitude
do panorama que se abrangia dos pontos mais elevados era mais rasgada
e deixava-nos os olhos extasiados no matizado da vegetação que se
estendia, como uma manta cerzida por mãos de fadas, no corredouro
das serras que vinham dos lados do Gerês.
Quando
a hora do regresso se aproximava e os últimos avisos se faziam aos
mais retardatários e aos que se agarravam ao lugar, mais nos custas
partir. Um halo de saudades prendia-nos à Penha e era como um aviso
pura os tempos futuros, de quando saíssemos de Guimarães. E eu,
como muitos, ficávamos mais um bocado, demorando a partida,
esperando que os mais apressados se adiantassem, para depois
descermos a corta-mato, impelidos por um fogo de que só a mocidade é
capaz. E éramos nós que esperávamos que os outros chegassem,
contentes por lhes cortarmos o caminho e podermos recebê-los quando,
por fim, nos encontrassem.
Muitas
vezes tenho ido à Penha depois de ter acabado o meu curso liceal e
sempre que lá vou os meus olhos ficam presos na beleza rude do
lugar, na paisagem que se divisa lá de cima e nos recantos
ensombrados e acolhedores das suas árvores frondosas. Mas ainda não
tinha visto o basto que nele colocaram numa placa ajardinada — o
busto de José de Pina, que foi meu professor, meu amigo e um dos
mais ilustres vimaranenses do meu tempo. Junto do seu plinto tive a
oportunidade de recordar a um punhado de amigos que, como eu veneram
a sua memória, alguns episódios da minha vida estudantil que a ele
me ligavam, episódios que, só de lembrá-los, me turvaram os olhos
com a breve emoção de uma saudade. Mas devia-lhe uma palavra de
gratidão. José de Pina foi dos homens mais bondosos e mais simples
que encontrei na vida, daqueles que deixam uma esteira de exemplos
que se conhecem, que se louvam e só não se seguem porque a bondade,
a modéstia, a simplicidade, a tolerância, a compreensão e o
talento não os possuem quem quer, mas somente aqueles que são
iluminados pelo fervor duma crença e aquecidos pela chama da
justiça, da inteligência e da verdade.
Ao
recordá-lo em frente do busto que testemunha a estima que Guimarães
lhe tinha, não fiz mais do que avivar um punhado de lembranças,
dessas lembranças que são um regresso e um tormento para aqueles
que, como eu começam a ter um mundo de recordações para desfiar.
Joaquim
Pacheco Neves
Notícias
de Guimarães, 3 de Setembro de 1967
(Texto
inicialmente publicado no O Comércio do Porto)
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