O escritor Joaquim Pacheco Neves, quando jovem. |
Se é verdade que as
festas Nicolinas são dos estudantes da cidade de Guimarães, nem todos os nicolinos
são vimaranenses. Tempos houve em que boa parte dos estudantes de Guimarães não
eram vimaranenses. Mas não deixavam de ser nicolinos. Nas turmas que frequentei, na década de 1970, no então Liceu de Guimarães, muitos dos meus colegas vinham
dos concelhos de Felgueiras, de Santo Tirso, de Famalicão, de Fafe ou das terras de Basto e não se distinguiam dos de Guimarães, no seu entusiasmo pelas
festas dos estudantes. Eram nicolinos como todos nós, com reencontro anual marcado
para a noite do cortejo do Pinheiro, que também celebra a saudade.
Nicolino foi, por exemplo, o escritor vila-condense Joaquim Pacheco Neves, que estudou em Guimarães na década de 1920 (numa nota biográfica que encontrei, leio que que frequentou a “Escola Académica de Guimarães” — o Colégio Académico, decerto), onde completou o ensino secundário, daqui saindo para ingressar na Faculdade de Medicina do Porto, de onde saiu médico em 1932. A sua vivência das festas do S. Nicolau dos estudantes gravou imagens tão impressivas na sua memória que, mais de meio século depois, ainda permaneciam à flor da pele, como se percebe pelo belo texto que publicou por altura das Nicolinas de 1980, no jornal portuense O Primeiro de Janeiro, que pode ser lido a seguir.
Nicolino foi, por exemplo, o escritor vila-condense Joaquim Pacheco Neves, que estudou em Guimarães na década de 1920 (numa nota biográfica que encontrei, leio que que frequentou a “Escola Académica de Guimarães” — o Colégio Académico, decerto), onde completou o ensino secundário, daqui saindo para ingressar na Faculdade de Medicina do Porto, de onde saiu médico em 1932. A sua vivência das festas do S. Nicolau dos estudantes gravou imagens tão impressivas na sua memória que, mais de meio século depois, ainda permaneciam à flor da pele, como se percebe pelo belo texto que publicou por altura das Nicolinas de 1980, no jornal portuense O Primeiro de Janeiro, que pode ser lido a seguir.
As
Nicolinas
Já
não ouço com o alvoroço de outrora o rufar das caixas e o estrondo dos
zabumbas, ao romper das madrugadas chuvosas e nevoeirentas de Dezembro a
anunciar as Nicolinas, em Guimarães. O meu ouvido vai-se apagando à medida que
os anos vão correndo e transformando num eco de macias ressonâncias o que tinha
as bravezas das agressões auditivas.
Já
se passaram muitos anos e muitas cruzes se ergueram ao longo do caminho. Nesse
tempo, não pensava nas amizades que um dia haveria de perder, nem nos
desenganos que sofreria nas voltas da vida. Pensava, apenas, na molhada de
esperanças que me era prometida, nas alegrias que envolviam a minha descuidada
juventude, nas rijas pancadas que havia de dar na pele dos zabumbas para tentar
estourar, à força de músculo, as suas fibras esticadas e vibrantes.
O
cadenciado do rufar nas caixas e as pancadas certas das marretas nos bombos
transmitiam a toda a cidade de Guimarães uns apelos a que poucos resistiam.
Eles faziam parar o estudo nos colégios, calar as conversas nos cafés, trazer
às janelas os olhares curiosos daqueles que, embora não participando eram
influenciados por um chamamento ancestral que definia o homem primitivo e
bárbaro. E lá íamos todos de encontro à rusga, risos abertos, numa névoa que
transbordava alegria mal pegávamos nas maçanetas ou fazíamos dançar baquetas
nas mãos, num rufar desesperado e enlouquecedor. Se não estourávamos a pele dos
zabumbas, eram os zabumbas que nos deixavam esgotados, ofegantes, com lanhos nas
mãos que nos incomodavam mas não impediam de prosseguirmos.
Corríamos
a cidade de lés a lés, a capa traçada ao jeito coimbrão, o barrete na cabeça
para abrigo das frialdades geladas que desciam da Penha e nos cortavam, ao arrepio,
a parte mais tenra das orelhas, as mãos já envoltas em lenços para as proteger
dos lanhos por onde corria sangue. Andávamos quase toda a noite a sacudir o silêncio
das horas mortas e a espavorir dos lugares mais ermos os encantados espectros
que por lá peregrinavam à espera da nossa vinda...
Já
não ouço com o mesmo alvoroço de outrora o rufar das baquetas nas caixas, nem o
estrondo das maçanetas a zurzir com força a pele dos bombos E não é porque o
meu ouvido tenha começado a embaciar ou a esclerose o tenha transformado num
muro onde já não passam os sons. O que não me deixa ouvir com o mesmo alvoroço
de outrora é a distância que me vai separando do tempo em que os fazia vibra e
era comparsa certo nas rusgas que percorriam a cidade e na noite do Pinheiro, o
acompanhavam do Cano até ao lugar onde acabava por morrer de pé, na Avenida.
Quantos
anos já passaram depois de assistir às minhas últimas Nicolinas? Muitos foram
sem que a limpidez da recordação se perdesse. Há ainda como que um chamamento a
querer levar-me mais uma vez a Guimarães, a fazer viver-me de novo esses tão
recuados tempos da minha juventude, num regresso ao passado que me saberia bem
recordar e que recordaria com gosto se não soubesse que uma forte emoção
perturbaria a minha já ferida sensibilidade.
Quem
é que encontraria do meu tempo para abraçar? Que vozes tumulares não iria ouvir
nas ruas para mim desertas da cidade? Que espectros colariam à minha presença na ronda dolorosa dos lugares que já não existem? E que recordaria do estudantinho
bisonho, nada agarrado aos que percorria os mais escondidos recantos do velho
medieval à espera de ver perpassar figuras de guerreiros com as suas pesadas achas
de armas, os seus elmos de metal a espelhar, as suas cotas de malhas já rotas,
os velhos pendões de Ourique rasgados pelos ventos da esperança e da glória?
Seria
como a alma sensível de um poeta atirada para as sombras de uma ode que não foi
escrita, mas que ficou a ser sempre lembrada pelo que podia ter sido e não
fora, pelo que é e em breve pode deixar de ser.
É
por isso que não vou a Guimarães, agora que as Nicolinas, ao romper de
Dezembro, deixam nas madrugadas frias e nevoeirentas um rasto de ruídos
selvagens que transformam em macias recordações aqueles momentos que se viveram
com o entusiasmo transbordante das juventudes apaixonadas. Não quero destruir o
que de belo e jovem ficou a perdurar no meu espírito, nem que o meu mundo de
tristezas apague os clarões de fogo que ainda incendeiam as minhas mais
queridas recordações.
São
essas mensagens que, no alvor das madrugadas frias e nevoeirentas de Dezembro,
começo a distinguir, já sem o alvoroço doutrora mas ainda e sempre com o
incontido desejo de voltar ao passado e zupar de novo na pele esticada dum
bombo aquela melopeia bárbara que me percorria as veias e enchia de inapagáveis
ruídos as velhas e silenciosas ruas de Guimarães — ra-ta-tam, ra-ta-tam, ra-ta-tam...
Joaquim Pacheco Neves
O Primeiro
de Janeiro
[Republicado no O Comércio de Guimarães, de 16 de Janeiro de 1981]
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