Ferreira de Castro e Jorge Amado |
A propósito da imagem que ilustrava o texto que Ferreira de Castro escreveu em 1963 para o jornal O Comércio de Guimarães e que aqui foi reproduzido há dias, o meu bom amigo César Machado recordou o que o escritor Jorge Amado escreveu em Navegação de Cabotagem, obra publicada pela primeira vez em 1992, com o subtítulo apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei, que inclui um capítulo em que fala do busto das Caldas das Taipas do autor de A Selva.
É sabido que as memórias que nós guardámos são o que recordámos daquilo que já esquecemos. No essencial, correspondem ao que aconteceu, embora por vezes falte precisão a alguns pormenores, quase sempre irrelevantes. Assim acontece com a recordação de Jorge Amado de factos que aconteceram mais de duas décadas antes, onde saltam aos nossos olhos dois lapsos, um toponímico (chama Taipa às Taipas), outro cronológico (situa o que conta no ano de 1970, quando o monumento de que fala apenas foi inaugurado em 1971).
Eis o texto de Jorge Amado:
Taipa, 1970.
O busto
Ferreira de Castro nos ensina o norte de Portugal no Verão sem mácula, de cidade em cidade, de aldeia em aldeia, conhece cada recanto, paisagens e histórias, de Oliveira dos Azeméis onde nasceu à fronteira espanhola. Mesmo com o calor de Julho veste-se para o rigor do inverno, não abandona o terno pesado, o colete e o chapéu, não sei de ninguém com tamanha fobia a resfriados, nenhum francês o ganha no repúdio às correntes de ar. No carro pede a Zélia que lhe cante o Luar do Sertão, cantiga em que é vidrado.
Perto de Guimarães, na localidade de Taipa, ergueram-lhe um busto, os portugueses se orgulham do romancista traduzido em todas as línguas, carregado de prémios — vem de receber a Águia de Ouro de Nice, atribuído por um júri internacional presidido por Miguel Angel Asturias. O busto no parque da aldeia, à sombra das árvores, próximo a um banco onde conversam labregos na folga do domingo. Louvo o gesto da municipalidade e da gente do lugar, a homenagem, o autor de A Selva não comparte de meu entusiasmo:
— Uma pena, botaram-me a perder o veraneio. Todos os anos, no verão, vinha aqui para uns dias de descanso. Antes do sol se pôr, à tarde, sentava-me naquele banco — aponta o banco junto ao busto —, conversava sobre a chuva e o bom tempo, a vida e a morte com os patrícios, sabem coisas, contavam-me das pessoas e dos costumes, os detalhes com que se fazem os romances. Sabes como é.
O vento na praça, Ferreira de Castro ajeita o cachecol:
— Conheciam-me como o homem do chapéu porque ando de cabeça coberta para não apanhar defluxo, não sabiam quem eu fosse, conversavam à tripa solta, eu era um deles. Agora, acabou-se, não serei eu quem irá sentar-se diante do busto, papel ridículo. Deixei de vir ao veraneio, a conversa se perdeu, já nada me contam, passei a ser Vossa Excelência, dão-me boa-tarde e se despedem, uma tristeza. Vamos embora antes que pensem que vim aqui para vos exibir o busto, pavonear-me.
Jorge Amado, Navegação de Cabotagem, 1992
O busto de Ferreira de Castro nas Caldas das Taipas foi inaugurado às 18 horas do dia 17 de Abril de 1971, no decurso de uma homenagem ao escritor promovida pelo Círculo de Arte e recreio e dinamizada por J. Santos Simões. O busto é obra do escultor António Duarte, que prescindiu de qualquer retribuição e o pedestal foi desenhado pelo vimaranense Eduardo Ribeiro. O arquitecto Lobão Vital, companheiro de Virgínia Moura, colaborou na concepção do monumento.
Na cerimónia de inauguração, relatada pelo Notícias de Guimarães de 24 de Abril de 1971, intervieram Santos Simões, o grande animador da iniciativa, em nome da organização, José Oliveira, presidente da junta de freguesia taipense, e o crítico literário Arsénio Mota.
Na sua intervenção, Santos Simões, referindo-se ao escritor homenageado, disse:
(…) a sua simplicidade, bondade e actividade ao serviço de um espírito penetrante e lúcido, granjearam-lhe, em relação a muitos, uma sincera admiração pelo Homem, enquanto a sua obra foi conquistando louros e o respeito de outros escritores. Tanto os que o admiram como inimitável contador de histórias como os que tem convivido com o Homem, passarão, daqui em diante, a reunir num só o Ferreira de Castro representado no bronze deste jardim público e, uns e outros, entenderão, no seu juízo certo, o certo juízo do povo que, tanto o Escritor como o Homem, mereceram, amplamente, esta pública consagração.
No final, Santos Simões deu a sua voz a inúmeras mensagens enviadas por amigos e admiradores do homenageado que, na impossibilidades de estarem presentes, fizeram questão de deixar os seus testemunhos. A leitura terminou com uma saudação enviado do Brasil por Jorge Amado:
Meu desejo seria estar presente a homenagem que vai ser prestada a Ferreira de Castro pelos seus patrícios, admiradores e amigos. Também eu, velho admirador e amigo seu: a admiração precedeu a amizade, pois, ainda adolescente, em colégio interno, li A Selva e empolguei-me com suas páginas, com a história de espantar do menino em meio à floresta, do homem perdido, reencontrando-se na coragem inabalável, na fé do destino humano, na solidariedade.
De então para cá, a admiração pelo romancista só fez crescer: Ferreira de Castro é um grande ficcionista contemporâneo, um dos maiores romancistas do nosso tempo, honra e orgulho de quantos escrevemos em língua portuguesa. Veio depois a amizade de um jovem escritor brasileiro estreando aos 19 anos, teve o apoio generoso do confrade consagrado e glorioso. Desse primeiro contacto humano cresceu a amizade que é uma das riquezas da minha vida. Assim sendo, bem podeis imaginar a alegria com que me associo a esta homenagem a Ferreira de Castro, grande escritor e cidadão exemplar. — Rio de Janeiro, 29/3/1971 — Jorge Amado.
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