Na
sua primeira grande exposição individual, realizada no Porto na
Primavera de 1923, Abel Cardoso foi apresentado aos
portuenses pelo escritor
Raul Brandão,
num texto inserido no folheto que foi distribuído na altura. Nele o
escritor da Casa do Alto retrata Abel Cardoso como um
elegíaco e um tímido, um pintor regionalista e um poeta
e descreve as suas opiniões acerca das telas que lhe passam diante
dos olhos
O
catálogo onde foi originalmente publicado este texto pode ser
visto na exposição sobre a vida e a obra do pintor Abel Cardoso que
está patente, até ao final deste mês de Outubro, na galeria de
exposições da Escola Secundária Francisco de Holanda, em
Guimarães.
Aqui
fica.
Abel
Cardoso
Percorro
rapidamente a obra deste pintor: as suas manchas, os seus quadrinhos
de figura e de género, as suas rápidas pochades
de beira-rio ou beira-mar — e conheço-o como se lidasse com ele há
muitos anos. É um elegíaco e um tímido, que me desvenda
inteiramente a sua alma. Tradu-la em tintas, em cor, na maneira como
interpreta um fio de água que reluz, uma mancha de sol amarela num
campo, um caminho ignorado de aldeia. Mas conheço-o muito melhor se
me deixo ficar durante uma hora em frente destas telas cheias de vida
e de saúde, que contêm um fio de tristeza escondida, um nada, o
bastante para molhar de poesia os pincéis ou a espátula com que
Abel Cardoso às vezes nos dá os tons ásperos e violentos,
necessários a certos quadros de movimento e vida. É quase nada, mas
sinto-o. É o indispensável para que algumas das suas paisagens nos
façam cismar… Árvores em fila, uma poça, um charco azul, e anda
nestas águas translúcidas, uma alma a boiar, tão pequenina que é
quase um reflexo, um sonho que vai desaparecer se não falamos mais
baixo. Adiante… Adiante é uma série de motivos, todos nossos
conhecidos, todos nossos amigos: uma eira cheia de sol, uma ermida
muito branca, o monte esfarrapado e solitário, que no Inverno usa
capa de remendos— manchas copiadas do natural, com a frescura das
tintas passadas ao ar livre da vida para a tela. Às vezes são
rápidas brochadas, e tão fáceis que me parece que as vou eu
pintar, impressões simples mas vivas como a vida. É o Minho com a
sua cor, as suas estradas, as suas choupanas, as suas couves imóveis
como bronzes, o seu ar e as suas águas, as suas figuras e os seus
tipos. Detenhamo-nos um momento diante destes homens de varapau,
destas velhas enrugadas, dos quadros de género, que acho
interessantíssimos, e que tenho pena que Abel Cardoso não
completasse: quem fez o lagar e a trave no dia da pisada, devia
pintar também, para completar a série, o homem, a mulher, a moça e
o boi na vessada, a malha no eirado quando a pojeira sobe ao céu e
apanha a última luz, a vindima nos campos com os grupos de borrachos
gritando. Deixem-me porém destacar de todos estes quadrinhos uma
tela cheia de carácter: é a figura da velha pedinte, sentada numa
igreja à beira do altar. Não sei se pede esmola — mas espera-a.
Tem a saia pelos ombros e os seus cabelos, a sua fisionomia, são
admiráveis de expressão. É uma pobre mulher do povo. O que ela tem
sofrido a carregar, a lidar, dizem-no as mãos como cepos, a cara
retalhada de rugas, e a boca que não grita porque estes seres
humildes se resignam sempre. Este quadro é dum pintor de grande
talento. Depois noto a série de telas de beira-mar, da beira-mar
minhota, porque Abel Cardoso deitou de tal forma raízes na sua
província que não pinta senão paisagens do Minho, figuras do Minho
e o mar do Minho. Efectivamente é o pedaço maravilhoso da costa de
Caminha a Viana que desfila diante de mim com os seus castelos,
roídos pelo salitre e doirados pelo sol, as suas ondas dum verde que
se trespassa de luz e a crista já cheia de espuma a desabar, as suas
névoas que dão aos poentes uma amplidão e uma vida
extraordinárias, as areias cor de oca molhada onde a tinta azul
empoça, o farol de Montedor, e a larga paisagem, verde para o sul,
roxa e diáfana para o norte — os mil aspetos, enfim, da praia, do
mar e da costa minhota.
Em
conclusão: é Abel Cardoso um pintor regionalista e um poeta, apesar
do seu vigor e da sua vida forte e saudável. Ama e pinta a província
onde nasceu. Às vezes sonha-a. Não digo que o seu canto atinja
grandes proporções e chegue às estrelas. Mas não é quando se
fala mais alto que se é melhor escutado. Quantas vezes uma voz
amiga, num tom sentido e justo, nos penetra fundo na alma! É este o
caso do pintor que aparece hoje só e com uma grande parte da sua
bela obra diante do público portuense. Como tripeiro que sou, tenho
muito prazer em o apresentar aos meus patrícios.
Raul
Brandão
Texto
publicado no folheto Exposição
de Pintura
de Abel-Cardozo,
Abril
de 1923,
Átrio da Misericórdia – Rua das Flores, Porto.
5 Comentários
Seria muito interessante saber onde páram os quadros especialmente referidos por RB, e mais ainda saber se ABC o retratou alguma vez.
Ou se a relação entre eles teve início adentro da Sociedade Martins Sarmento, em que Cardoso foi pintor decorador trabalhando com Marques da Silva, ou em que outro contexto local.
Nada disso interessou — infelizmente — as pessoas que tomaram a seu cargo as comemorações dos 150 anos do escritor em Guimarães em 2017. Estas velharias tão-pouco aos políticos actuais, que certamente julgam que a história duma cidade começa no dia em que eles aí chegaram por via partidária, menos comunitária do que apregoam...
Obrigado, António Amaro das Neves. Estou em Lisboa e não tenho maneira ou oportunidade de ir a Guimarães ver esse exposição que me interessa, pela parte que envolve Brandão e pelos motivos anteriormente ditos. Talvez um dia possa dedicar-me a esse assunto, que considero interessante, tanto mais que como bem sabe RB desenvolveria também trabalho de pintor de motivos minhotos. Ainda assim, manter alerta quem possa ler isto e queira ajudar mostrando o que sabe ou tem, já é passo nesse sentido.
Há algum catálogo da exposição na Escola FH ?
Um abraço, Vasco
A exposição da EFH não tem catálogo, mas tem à disposição o seu curador, Abel Cardoso, como o avô, que é hoje ao guardião da memória do pintor, que poderá fornecer muitas informações úteis.
Pela minha parte, apenas direi que tenho a impressão de que Raul Brandão e Abel Cardoso não terão tido uma relação próxima: não tenho memória de qualquer correspondência entre ambos, não leio qualquer referência ao pintor nas Memórias de Brandão, nem me lembro de qualquer referência gráfica a Brandão na obra de Cardoso, onde não faltam representações das pessoas com quem convivia. Apenas conheço este texto do catálogo da exposição do átrio da Misericórdia.
De qualquer modo, uma conversa com o Abel Cardoso (neto) poderá ser útil para aprofundar o assunto. Posso mediar o contacto.
Um abraço, António