De Rija Têmpera (retrato), óleo de Abel Cardoso, do catálogo da exposição do Salão Bobone, 1924. |
Em Novembro de 1924, Abel Cardoso
realizou a sua segunda grande exposição individual. Acolheu-a o
emblemático Salão Bobone, na rua Serpa Pinto, em Lisboa, onde o
pintor vimaranense expôs mais de uma centena de obras, assim
repartidas: figura, género e
interiores (14); o
Minho: paisagem
de Guimarães (48),
Viana do Castelo – marinha
(25)
e paisagem
(17); paisagem
do Gerês (12); Póvoa de Varzim (1).
O catálogo
ilustrado da exposição tinha
um texto do escritor Joaquim
Costa, apresentado como publicista
e crítico de arte, amigo e
contemporâneo de João de Meira, em que traça o perfil do artista,
que, logo no segundo parágrafo, contraria a afirmação de Raul
Brandão de que Abel Cardoso seria um elegíaco (triste e lamentoso),
quando afirma que “ o pintor, sendo um subjectivo, não é de modo
algum um elegíaco; comunicando à sua arte uma onda fremente de
emoção, não é um triste”.
O
opúsculo
onde o texto que agora aqui se reproduz foi publicado
originalmente, está na
exposição sobre a vida e a obra do pintor Abel Cardoso que está
patente, até ao final deste mês de Outubro, na galeria de
exposições da Escola Secundária Francisco de Holanda, em
Guimarães.
Abel Cardoso
“Não é um desconhecido o pintor que
hoje se apresenta perante o público culto da capital. A sua obra
forte e magnifica marcou de há muito o seu nome e a sua
individualidade na arte.
Abel Cardoso é quase um retraído e um
simples. Se passa facilmente da luz tranquila do seu atelier para as
perspectivas largas da natureza, em que o idílio rural se lhe
oferece, no seu esplendor e na nua luminosidade, fatiga-o certamente
o drama do viver moderno, agitado e convulso, fremente de ambições
e de cóleras e irrequieto como as infinitas ansiedades da alma
humana. Mas o pintor, sendo um subjectivo, não é de modo algum um
elegíaco; comunicando à sua arte uma onda fremente de emoção, não
é um triste.
Se a paisagem é para ele, como foi para
Anniel, um “estado de alma”, ela banha-se frequentemente do oiro
puro do sol; e as manhãs, cheias de tonalidades de rosa e pérola,
são preferidas por ale aos crepúsculos em que a luz agoniza em
gradações de cinza e violeta.
Abel Cardoso é um temperamento
equilibrado e forte; é uma alma sadia, cheia de sinceridade e de
coragem. A gente olha para as suas tábuas ou para as suas telas, e
vê sorrir largamente a intimidade do pintor. As tintas em que ele
nos transmite as suas impressões são fortemente comunicativas,
porque a sua arte é essencialmente reveladora.
Como paisagista, prende-o sobretudo o
campo minhoto, com as suas leiras de lavoura humilde; os casais
pobres, cobertos de colmo ou de telha romana; o mar franjado de
espumas de prata ou as dunas irregulares em que a vegetação
silvestre mal aflora.
Às vezes, segue com alheamento os bois
na pastagem; fixa-lhes o vulto em tintas empastadas, em que um
desenho másculo apenas indica as atitudes, vagamente contemplativas,
em meio do cenário exuberante e alacre.
E sente-se que, ao fixar tudo isto, o
pintor tem a sua hora de recolhimento e de paz interior, para que a
sua profunda visão das coisas comunique às tintas a porção
subjectora da sua alma.
É este carácter de sinceridade que dá
à sua arte uma acentuação rara de nobreza. O ímpeto de vida que a
tudo transmite e a nota mais simpática e mais comovida da sua
marcante individualidade de pintor.
Não é preciso certamente entrar em
minúcias de técnica, para avaliar o seu mérito e medir o grau da
sua emotividade. Qualquer pessoa acostumada a ver, reconhece-o
imediatamente, perdido em meio de uma imensidade de pintores com quem
houvesse jantado em fraterna camaradagem.
Abel Cardoso, que atravessou também,
como muitos artistas nossos, a boémia doirada de Paris, manteve-se,
a despeito de todas as influências, profunda e irredutivelmente
português. E se a paisagem do Minho se embebe nas suas telas de uma
cor que a sua retina transfigura, a verdade é que a visão pictural
do artista sabe evocar profundamente os aspectos da terra, com os
seus longes indefinidos, as aldeias entre arvoredos sossegados, águas
claras em que se espelhou um dia o perfil de Diogo Bernardes, ou o
céu incomparavelmente azul, que é bem nosso pela harmonia da cor e
a pura claridade da sua transparência.
Eu creio que Abel Cardoso faz, por vezes
concessões ao modernismo, interpretação impressionista de certos
efeitos, que o interessam vivamente; mas ainda não notei que
abdicasse da sua personalidade para pintar de cor.
Esta característica da sua arte tem-lhe
criado uma bela reputação de dignidade, e eu creio que sobre ela
assentará essencialmente a sua glória de pintor.
Como paisagista, o Minho deve-lhe imensa
devoção e a maior ternura. Como pintor de género ou como
observador de tipos regionais, é já grande a sua galeria de
figuras, em que se agrupam cavadores e mendigos, homens de lavoura e
trabalhadores do mar, tostados e fortes como ele.
Pelo equilíbrio e a sinceridade da sua
arte, Abel Cardoso merece-nos a mais franca e aberta simpatia. A sua
obra é já hoje uma obra de beleza, é, pela porção de emotividade
que en cerra, uma afirmação de talento, a que a expressão saudável
do seu espírito comunicará certamente uma orientação vitoriosa.”
Texto
publicado no catálogo
ilustrado da
Exposição
de Pintura de Abel-Cardoso,
Novembro
de 1924,
Salão
Bobone
– Lisboa.
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