O Pintor Abel Cardoso (1877-1964). |
Há
100 anos, o pintor Abel Cardoso era o director da Escola Industrial
Francisco de Holanda, em Guimarães, de que tinha sido um dos
primeiros alunos e onde o seu pai, António Augusto da Silva Cardoso,
também pintor, foi o primeiro professor. Em 1931 foi provido num
lugar de professor efectivo na Escola Industrial de Afonso Domingues,
em Lisboa, onde se se distinguia pelos traços salientes da sua “figura inconfundível: a sua elevada estatura e as barbas brancas”. Foi lá que o conheceu, em 1943, um jovem professor de
História e Filosofia, recém saído da universidade, José Craveiro. Por
aqueles dias de conflito e convulsão por toda a Europa, o jovem José Craveiro
não podia imaginar que, volvidos pouco mais de trinta anos,
também ele viria a ocupar o lugar de director da Escola Francisco de
Holanda.
Nas
Gualterianas de 1969, a comissão das festas homenageou Abel Cardoso
(um
dos inventores das festas da cidade de Guimarães), promovendo na
Sociedade Martins Sarmento uma grande exposição com as suas obras
dispersas. No dia em que a exposição foi inaugurada, 2 de Agosto,
José Craveiro publicou nas páginas do Notícias de Guimarães o
texto que a seguir se reproduz, em
que rememora o seu encontro com Abel Cardoso na Escola Afonso
Domingues.
Guimarães
deve a Abel Cardoso uma grande exposição da sua obra de pintura e
desenho. Entretanto, até finais de Setembro, continua patente na
Escola Secundária Francisco de Holanda a exposição biográfica “Abel Cardoso
– 1877-1964”, organizada por um outro Abel Cardoso, neto do
pintor. Vale a pena visitá-la.
Abel
Cardoso
Abel
Cardoso foi um operoso pintor que, simultaneamente, despendeu os
melhores anos da sua vida nas fadigosas lides do ensino.
Não
me cabe nem me é possível buscar e achar pedestal que assinale o
grau de valor da sua obra pictórica. Quando outras limitações não
tivesse, uma, de raiz, me tolhe completamente: não a conheço senão
escassa e esparsamente. É de crer que outro tanto aconteça a boa
parte, talvez à maior parte da população vimaranense, e aqui está
uma razão, a primeira e a maior, para se render homenagem à
Comissão que, integrada nas Festas Gualterianas, chamou a si as
fadigas de reunir e expor a maior parte possível da obra do Pintor.
A
mensagem dum Artista só existe na contemplação da sua obra. Dar a
obra dum Artista nos olhos e à alma dos espectadores é meritória
promoção de cultura e justificação exaltante duma vida de sonho,
experiência e trabalho. Bem haja a Comissão por devolver a
Guimarães um grande de Guimarães, através da sua obra.
Conheci
Abel Cardoso em Lisboa, professor na Escola Industrial Afonso
Domingues, onde em 1943-44 dei os meus primeiros passos
profissionais. Era uma figura inconfundível: a sua elevada estatura
e as barbas brancas distinguiam-no tão bem entre os demais
professores como a posição de mentor em que frequentemente o
colocavam, fosse na sala de convívio, no átrio ou no eléctrico, os
colegas mais novos, especialmente os professores de desenho. Eram
frequentes os colóquios e discussões. sobre temas de Arte ou de
Pedagogia. Neles intervinham, mais notável e empenhadamente,
pintores como Jorge Pinto, Lauro Corado, Américo Marinho e outros.
Com
uma pitada de filosofia, outra pitada de amadorismo artístico e
muito interesse pelos temas em discussão, depressa passei de mero
“escuta” a participante.
E
foi Abel Cardoso, o mentor do grupo, que fez abrir alas e me deu a
entrada.
Franganito
saído há pouco da Universidade, atrevi-me a opor ousadamente a
minha à opinião que o Mestre então defendia.
—
Ó doutor, veja como fala! Que diabo,
repare era que está a falar com pintores!
—
Eu vi isso muito bem – respondi-lhe. E
quanto a cores, quentes ou frias, equilíbrio ou desequilíbrio de
quadros e outras coisas da técnica, todo eu sou ouvidos perante os
vossos discursos. Mas... trata-se de um problema de Filosofia da
Arte. E. nessa matéria, desculpem, meus senhores, a minha vaidade,
mas já reparei que eu sei mais que os senhores todos juntos.
Foi
um pontapé nos estômagos daquela gente toda.
Em
minha consciência, considerei-me atrevido; e esperei que a
assembleia se fechasse definitivamente para a minha excessiva e
descarada juventude.
Mas
não. Abel Cardoso quis discutir o assunto tão exaustivamente quanto
possível. E, magnanimamente, em vez de repelir-me, o velho professor
e mentor do grupo atraiu, amável e compreensivo, a minha palavra,
por vezes nitidamente herética, não para a combater mas para a
discutir, esforçando-se tanto por esclarecê-la corno por
esclarecer-se com ela.
Espírito
aberto, compreensivo — Abel Cardoso mereceu à minha juventude uma
consideração, um respeito, que ainda se não apagaram. Por isso,
fico particularmente grato à Comissão que vai permitir-me apreciar,
em bloco, a sua obra de Pintor.
José Craveiro
Notícias
de Guimarães, 2 de Agosto de 1969
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