A Invenção das Gualterianas


Hoje, dia 4 de agosto do anno de 1906, as Festas a S. Gualter renascêram das cinzas.
João de Melo liderou a vontade de muitos vimaranenses para fazer renascêl-as.
José (Luiz) de Pina inventou os bonecos articulados, o padre Gaspar Roriz escreveu a lêttra para o hymno de Guimarães e Abel Cardozo desenhou o bellíssimo Arco Árabe.
[cartoon de Miguel Salazar]


O texto que se segue, que serviu para legendar um magnífico cartoon do meu amigo Miguel Salazar, no âmbito de um projecto de estudo e divulgação de temas da identidade vimaranense, ainda não o tinha partilhado aqui. Trata das origens das festas Gualterianas e, acredito, vem a calhar num tempo em que muito se tem falado acerca da natureza, do presente e do futuro das populares festas da cidade.


A Invenção das Festas da Cidade
da Feira de S. Gualter às Gualterianas
As Festas Gualterinas, que acontecem em Guimarães nos primeiros dias de Agosto de cada ano, podem ser um excelente caso de estudo para a compreensão dos mecanismos de criação duma tradição e de construção e avigoramento duma identidade local. No último quartel do século XIX, Guimarães, então uma cidade que se olhava ao espelho e que não se revia na imagem que lhe era devolvida, desperta para um processo de afirmação identitária sustentado na sua memória colectiva (história, tradições, património construído) e na dimensão simbólica da sua condição de matriz fundacional da nação, nas suas indústrias, que lhe granjearam os títulos, algo exagerados, de Manchester portuguesa ou de Sheffield portuguesa, na aposta na instrução, decorrente da clara consciência de que seria condição essencial para a elevação social, económica e cultural das suas gentes, e na cultura, área em que, no Portugal finissecular, Guimarães se projecta para um patamar que não estava ao alcance de qualquer outra cidade da sua dimensão.
Este processo de regeneração é o fruto do pensamento e da acção de uma geração de homens sábios e progressistas que corresponderam ao exemplo e ao incitamento de Francisco Martins Sarmento, que convocara as gentes da sua terra a mudarem de atitude perante os poderes centrais. Não por acaso, a alma mater deste processo de transformação cultural seria a colectividade que ostenta o nome do arqueólogo vimaranense. Intitulando-se de Promotora de Instrução Popular no concelho de Guimarães, a Sociedade Martins Sarmento organizou a Exposição Industrial de 1884, promoveu e divulgou os estudos de arqueologia e história local, afirmou-se como uma casa de cultura com uma dimensão sem par neste país.
Na viragem do século, o cimento da identidade vimaranense era já sólido. No entanto, faltava-lhe uma componente essencial: não havia em Guimarães uma grande celebração colectiva que envolvesse os vimaranenses e atraísse os forasteiros. Havia que encontrá-la.
Essa busca torna-se mais premente na última década do século XIX. Até porque havia um argumento que lhe dava força e urgência: outras terras já tinham as suas festas concelhias, nomeadamente Braga, onde o S. João ia ganhando uma dimensão que fazia sobressair a lacuna vimaranense.
Quando, em 1895, ressurgiram em Guimarães as festas a S. Nicolau, houve quem alvitrasse que aquelas poderiam transformar-se nas festas da cidade que se procuravam. Mas cedo se percebeu que assim não seria. Sendo as festas nicolinas exclusivas dos estudantes, que não abriam mãos das suas prerrogativas, jamais seriam adoptadas pelos vimaranenses como momento de celebração de toda a colectividade vimaranense.
A seguir, num processo de decalque espicaçado por uma rivalidade secular, então ainda mais à flor da pele, colocou-se o foco nos festejos de S. João, que em Guimarães andavam especialmente esmorecidos. Em 1899 projectou-se reanimá-los. Constituiu-se uma grande comissão para elevar a outra dimensão as festas a S. João da ponte de Santa Luzia. Mas esta iniciativa despertaria zelos adormecidos. Logo em seguida, anunciava-se uma outra comissão para organizar festejos a S. João, com esplendor e magnificência, junto à ponte do Campo da Feira. Naquele ano, Guimarães teve duas grandes festas a S. João, mas não ganhou as festas da cidade por que ansiava.
Por aqueles tempos, a imprensa ia fazendo repetido eco de um apelo: era preciso retirar a antiquíssima feira de S. Gualter do estado mórbido em que se encontrava. Depois de várias tentativas falhadas, em 1906 a Associação Comercial tomou em mãos a missão da regeneração daquela velha feira. Iam nascer, finalmente, as festas da cidade de Guimarães.
S. Gualter foi o fundador do primeiro convento de S. Francisco de Guimarães, em 1233. Morreria com fama de santidade, provavelmente em 1259. Os seus restos mortais foram depositados no convento que ajudara a erigir. Daí para a frente, a sua memória seria celebrada em dia incerto do mês de Agosto. Uma feira franca anual, que o rei D. Afonso V criou em Guimarães em 1452 entre os dias 7 e 17 daquele mês, seria baptizada de Feira de S. Gualter, por coincidir com os festejos que então se faziam ao santo. Em 1498, correspondendo a um pedido apresentado em Cortes pelos procuradores de Guimarães, D. Manuel I transferiria essa feira para 15 a 25 daquele mês, em razão de uma romagem que então se começa, ou seja, para coincidir com as festividades da Senhora de Agosto. Mais tarde, não sabemos ao certo quando, a feira passou a realizar-se nos dias à volta do primeiro domingo de Agosto, provavelmente em referência à trasladação solene das relíquias de S. Gualter no primeiro domingo de Agosto de 1577. Assim se manteria pelos séculos que se seguiram.
No século XIX, a Feira de S. Gualter era especializada em gado cavalar, muar e asinino, sendo apodada de feira das cavalgaduras. Na sua edição de 4 de Agosto de 1857, o jornal Tesoura de Guimarães relatava a feira desse ano:
A feira de S. Gualter passou sem novidade notável. Foi pouco concorrida mesmo dessas cavalgaduras ordinárias em que costuma abundar; mas não faltaram a ela os pacíficos e inermes amadores dos bens alheios, que das cinco partes do mundo ali concorreram com os seus jogos da roleta, vermelhinha, e outros que tais, para fazerem o seu lícito negócio. (…) Conquanto não houvesse este ano barracas, concorreu no domingo à noite grande número de pessoas e famílias inteiras, a ver ali as barracas. A ponte do Campo da Feira esteve cheia até à meia-noite, gozando ali a frescura da bela noite.
No ano seguinte, no mesmo jornal, podemos ler:
A feira este ano consistiu em barracas, vitela assada e copos de limonada. Se não fosse a gente da cidade, não se diria que havia feira. O gado que a ela concorreu, foi muito pouco e mau.
Os relatos da Feira de S. Gualter que encontrámos na imprensa, pelo século adiante, não se afastam muito dos exemplos que vão acima. Raro era o ano em que se não pranteassem os sinais da decadência que lhe prenunciavam a morte próxima. Regra geral, a ela já não acorriam belas estampas de cavalos, resumindo-se, quase sempre, a uma mostra de pilecas que em nada honravam o santo seu patrono. Mais do que uma feira, ia-se progressivamente transformando num arraial popular.
Por aqueles anos, a feira demorava três dias. No segundo (domingo), acontecia a feira propriamente dita, de compra e venda de gado, e o último era o dia da feira dedicado à trocas de animais. Mais do que o gado, o que por aqueles dias atraía os vimaranenses ao Campo da Feira eram as barracas que lá se instalavam várias semanas antes e que, normalmente, ali estacionavam quase um mês. Mercadejavam quinquilharias, mostravam curiosidades, vendiam rifas. Havia bichas de curiosos para espreitar os cosmoramas. Não faltava quem aliciasse incautos, que acabavam esfolados em jogos proibidos.
Na década de 1880, era visita frequente da feira um tal Ramiro, com uma barraca onde mostrava uma colecção de figuras de cera, vendia quinquilharias e rifas. Como seriam fastidiosas as noites naquele encantador local do Campo da Feira sem os berros, sem as garatujas, sem o fácil palavreado do Ramiro, escrevia-se no Religião e Pátria do dia 5 de Agosto de 1882, quando se anunciava que naquele ano o figurão não faltaria à feira. Que, aliás, iria ter concorrência de peso: naquele ano, um tal François Sousbié, apresentou na sua barraca um conjunto de quadros mecânicos e automáticos que deixariam os vimaranenses de boca aberta.
Anos houve em que se ergueram teatros de madeira no Campo da Feira. O exemplo mais antigo que conhecemos aconteceu nos tempo agitados que se viviam no verão de 1837, altura em que um tal Mr. Avrillon ali mandou erguer um teatro de madeira, para exibir a sua grande companhia de espectáculos de cavalinhos, danças na corda e outras acrobacias que, a crer no relato do cónego Pereira Lopes, causaram espanto e admiração.
Com o correr dos anos, eram cada vez mais evidentes os sinais de decadência da feira. Na imprensa, era recorrente o desfiar de memórias dos tempos em que ali se exibiam magníficos exemplares de cavalos, muitos deles trazidos de fora, alguns mesmo de Espanha. Percebia-se que uma feira como aquela ia deixando de fazer sentido. Os compradores eram cada vez menos, e os animais também, reduzindo-se a umas quantas pilecas. As tentativas para reanimar a feira repetiam-se. Correspondendo a apelos públicos, a Câmara chegou a patrocinar prémios monetários para os melhores cavalos que ali se apresentassem. Sem sucesso. Em Agosto de 1886, o Religião e Pátria descrevia a feira desse ano:
Aquilo não foi uma feira: foi apenas o rendez-vous de meia dúzia de burricos, pilecas, muito pilecas e muito poucos – realmente seriam a tal meia dúzia! Quanto a abarracamento, fornos, casas de venda, tudo o que constitui o ar de uma feira, nisso nem é bom falar! Brilharam pela ausência.
E anunciava:
A feira de S. Gualter morreu. Requiescat!...
Entre as atracções da antiquíssima Feira de S. Gualter de Guimarães, uma havia que teimava em resistir à erosão do tempo: a vitela. Os cavalos que vinham à feira podiam ser muitos, poucos ou nenhuns, mas a vitela, a indispensável vitela assada do S. Gualter, nunca faltava. Dias antes de a feira começar, multiplicavam-se os abates para aprovisionamento de casas de pasto e tabernas. Na feira podiam não se fazer negócios de monta, mas a vitela vendia-se sempre bem. Em 1877, por exemplo, a feira foi fraca, mas, como se escreveu num jornal, foi boa para as rifinhas, o rascante e… para a vitela, que se vendeu às arrobas. Em 1881, lê-se noutro jornal que a feira estava “froixa”, mas que algo não afroixara ainda: a matança de vitelas. Eis uma tradição gastronómica vimaranense que, apesar de ter boas raízes, acabaria por se perder.
Nos primeiros anos do século XX sucederam-se os apelos à tomada de medidas para a regeneração da Feira de S. Gualter. Em 1905, a Câmara anunciou a intenção de fazer ressuscitar a feira. Mas não passou daí. No primeiro domingo de Agosto daquele ano, escrevia-se no Notícias do Minho, sob a epígrafe A Feira de S. Gualter:
É hoje que esta pobrezinha põe em evidência, ali no Campo da Feira, uma das maiores vergonhas de Guimarães.
1906 estava destinado a ser o ano da ressurreição. No dia 16 de Maio, a Associação Comercial entregou na Câmara um ofício em que pedia um subsídio para o ressurgimento da Feira de S. Gualter. A vereação anuiu, lançando no seu orçamento 300$000 réis para fomento da feira e isentando de taxas a ocupação de terrenos para estabelecimentos temporários de comércio. Nos oitenta dias que se seguiram aconteceu em Guimarães um daqueles milagres de que os vimaranenses costumam ser capazes.
Constitui-se uma comissão, composta por João Fernandes de Melo, António Ferreira Ramos, José Fernandes da Costa, José de Freitas Costa Soares, Camilo Laranjeiro dos Reis, Simão Ribeiro, Torcato Ribeiro de Faria, Albano Pires de Sousa, António de Araújo Salgado e Albino Pereira Cardoso, que logo meteu mãos à tarefa da recolha de fundos. Começa a confeccionar-se o programa. Abel Cardoso e José Luís de Pina, artistas laureados, assumem os projectos de decorações. A execução das iluminações é adjudicada a Emiliano Abreu. No início de Julho, já se fazia a marcação do terreno do Campo da Feira para a instalação das barracas. Anuncia-se a contratação da conceituada banda militar de Múrcia. No Proposto, trabalha-se com afinco na construção da Praça de Touros. Os Bombeiros Voluntários treinam para os exercícios de demonstração que se propõem realizar. Prepara-se o regulamento da feira de gado, que se desdobrará em duas, em dias diferentes, uma para gado bovino, outra para gado cavalar. Aníbal Vasco Leão compõe e oferece à Associação Comercial o Hino da Cidade de Guimarães. O Padre Gaspar Roriz escreveu-lhe a letra. Entra em campo uma Comissão de Propaganda. Recomenda-se prudência no aumento dos preços aos proprietários de hotéis e hospedarias, fazendo-lhes notar que “as explorações redundam sempre em descrédito e prejuízos futuros”. A Companhia do Caminho-de-Ferro de Guimarães e a direcção do Caminho-de-Ferro do Minho e Douro também dão o seu contributo, estabelecendo comboios extraordinários a tarifas reduzidas, desde as estações do Porto, Braga, Barcelos e Viana até Guimarães. Imprime-se o guia do viajante, para ser profusamente distribuído aos forasteiros. Vivem-se dias frenéticos.
Naquele 4 de Agosto de 1906, a cidade amanheceu em festa. Nas ruas, exuberantemente ornamentadas, bandas filarmónicas cruzavam-se em todas as direcções. Os visitantes que chegavam de comboio e desciam pela avenida do Comércio, ao desaguarem no Toural eram saudados por um majestoso arco árabe, desenhado por Abel Cardoso, a fazer lembrar os velhos arcos festivos das nossas aldeias, mas com uma grandiosidade nunca antes vista. Começavam as Festas Gualterianas. Salve.
Os empregados do comércio também se juntaram à festa e, ao extenso programa, que se cumpriria na íntegra, acrescentaram um cortejo com balões venezianos iluminados e fogo-de-bengala multicolorido, que seria acompanhado por três bandas de música. Na altura, o singelo cortejo dos caixeiros quase se perdeu no meio da grandiosidade dos festejos. Porém, estava ali o embrião daquele que, com andar dos tempos, se tornaria no número mais emblemático das festas da cidade de Guimarães. No ano seguinte, sob orientação do Padre Gaspar Roriz os jovens trabalhadores do comércio de Guimarães traziam às ruas da cidade a primeira Marcha Gualteriana.
Guimarães tinha, finalmente, as suas Festas de Cidade, que logo no primeiro ano atingiram uma dimensão que pedia meças a quaisquer outras.
O resto é uma história que todos conhecemos há muito.
Publicado no n.º 28 (Agosto de 2015) da revista Mais Guimarães, pp. 37-40.

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