As Festas Nicolinas vistas pelo ribatejano Correia da Costa



Em 1945, Joaquim Correia da Costa (1896-1968), escritor natural da Moita do Ribatejo, um dos primeiros aderentes ao Integralismo Lusitano, foi um dos fundadores do Vitória Futebol Clube (o de Setúbal), que se chama assim por sugestão sua. Exerceu funções diplomáticas, como vice-cônsul de Portugal em Irun, cônsul em Nápoles e adido à Legação de Portugal em Berlim. Quando o final do ano de 1945 se aproximava do fim, esteve em Guimarães e publicou no Notícias de Guimarães um texto em que verteu as suas impressões sobre a cidade, que começa por classificar como “uma das mais originais e características cidades da Europa latina e ocidental” e em que lamenta que “no conjunto arquitectónico do Toural (…)  não exista ao centro um obelisco do século XVIII”.
Por aqueles dias aconteceram as celebrações do cinquentenário do ressurgimento das festas dos estudantes de Guimarães a S. Nicolau. Correia da Costa descreve as suas impressões Nicolinas, tais como as viram os seus olhos de ribatejano.

Variações: As Festas Nicolinas vistas por um estranho
A gótica Guimarães, como lhe chamava Camilo, é uma das mais originais e características cidades da Europa latina e ocidental. Como Toledo, como Carcassone, como Alcalá de Henares, como Nuremberg, com a qual se assemelha bastante, pela mise-en-scéne das suas ruínas, das suas ruas medievais e da Renascença, como a rua de Santa Maria, da sua arquitectura, do conjunto monumental do Castelo de Mumadona, da igreja românica de S. Miguel e do Palácio Ducal, pela patine cinzenta de burgo do norte, pode definir-se como cidade-síntese de todas as virtudes e grandezas da grei.
A sua luz matutina tem musicalidade. As suas tardes agasalham-se em cores estáticas e dormentes. As horas poeu-tinas adormecem em seus montes femininos e desfalecem em labaredas sanguíneas, em magnéticas cenografias. Todas as luzes, todas as cores, todas as gradações cromáticas se fundem numa luz musical onde os sentidos vibram em maravilhosos anseios, dir-se-ia que um espasmo adormece e embriaga as suas longas horas, no relógio isócrono do tempo.
Neste cenário vive simultaneamente uma raça milenária de que a Citânia de Biteiros e Sabroso, são testemunhos inconfundíveis.
Como o alto espírito do Dr. João de Meira definiu no seu admirável trabalho O Concelho de Guimarães, “o minhoto é, pois, o representativo de três raças diferentes: o germano, o celta e o lígure”, sendo esta última migração de origem asiática.
A conjugação da arquitectura, da história, da adição de raças, do espírito nortenho, da irreverência, talvez descendente da ironia vicentina, pois, segundo documentos que sabemos existirem, Gil Vicente, é nitidamente vimaranense e deu a Guimarães um lugar único entre as cidades lusitanas, podendo nós dizer legitimamente que Guimarães, certidão de baptismo da raça, está à mão direita de Portugal.
Vem este pequeno intróito, como nota preambular, a um espectáculo, a uma folia académica a que os nossos olhos estranhos e ribatejanos assistiram, numa noite de embevecimento académico.
Começaram as festas académicas, chamadas “Festas Nicolinas”, na quinta-feira, passada, com a comemoração das suas Bodas de Ouro, numa tradição que existe há perto de trezentos anos, tricentenariamente.
Dentro de uma expectativa curiosíssima, com a pombalina praça do Toural repleta dum público onde a mocidade era refulgência maior, com um friso local de enlevo feminino e estudantil, passou o Cortejo do Pinheiro, vindo do Campo do Salvador, ou Cano, até ao Campo da Feira, onde ficou “plantado”, e até lá puxado por várias juntas de bois barrosões, pequenos como ex-votos rurais e comparticipando nele alguns carros alegóricos e carnavalescos, numa pantomina feliz onde a alegria era a razão maior, a razão que liga o passado ao presente dos estudantes que foram e sito a determinante desta algazarra — porque estudaram, velhos e novos, no Liceu de Martins Sarmento.
Quem, há meses, assistiu, no enlevo atlântico do Estoril, a umas bodas de prata dum venturoso curso de direito, não pode deixar de acompanhar em alma e espírito uma alegria tão vivaz.
Quem é estudante ou foi estudante sê-lo-á sempre. Estudante do presente para o passado, estudante do presente para o futuro.
Ser estudante é ser justamente condenado a pena maior, à pena maior admirável de ser estudante vitalício, ser estudante da própria vida, estudante de corpo e alma.
As Festas Nicolinas vistas por um ribatejano dão-nos a alegria sã, ardente, vivacíssima e forte do Sul, como se o sul e o norte se irmanassem na mesma contente agitação.
Não é sem emoção sincera que se vêem deslisar esses carros repletos de mocidade mascarada, lembrando as festas italianas, a folia latina de viver segundo a segundo uma juventude contente e espontânea, com rufos de tambores que se prolongaram toda a madrugada numa algazarra de arraial ou festim beduíno.
A coroação destas festas com as Posses, com o Bando, o Cortejo das Maçãs em que na ponta de uma lança os estudantes oferecem uma paradisíaca maçã às donzelas que se debruçam nas janelas, originalíssima tradição que nunca se deve deixar morrer e que tem um ressaibo medieval, e a Récita final, coroam uma tradição digna de Guimarães, cidade única onde as lápides, as ruas silenciosas e históricas, as pedras milenárias e seculares, a alma dos seus lavrantes e a eternidade dos seus lavrados visigóticos, lhe dão um lugar único na corografia da grei e no património intelectual e artístico da Nação.
O enquadramento destes cortejos, o do Pinheiro e das Maçãs, originalíssimos desfiles, no conjunto arquitectónico do Toural, onde é pena que não exista ao centro um obelisco do século XVIII, unindo a praça numa harmonia total, podendo mesmo servir de modelo um que está exposto nos jardins da Sociedade Martins Sarmento, junto ao muro do Mercado Municipal, marca um significado académico digno de Coimbra e mantendo latente a exaltação da eterna juventude.
Que os estudantes velhos se lembrem que são cada vez m3is velhos e que os estudantes novos comam depressa a maçã do pecado, a tempo de sendo ainda novos não começarem rapidamente a ser velhos.
São estes os votos de uma testemunha ocular das vossas enternecedoras e contentes Festas Nicolinas.
Correia da Costa
Notícias de Guimarães, 9 de Dezembro de 1945


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