Artur Anselmo |
Artur
Anselmo tinha 9 anos quando chegou a Guimarães, em 1922. Já órfão de pai e mãe,
vinha “duma linda aldeia de Monção”, como aluno interno da Escola Académica, então instalada
na rua de Valdonas, e para frequentar o Liceu Martins Sarmento. Por aqui ficou
até completar os dois primeiros ciclos do ensino liceal, que concluiu em 1927.
Depois de Guimarães, formou-se em Direito. Entusiasta das festas Nicolinas, era assíduo na sua
participação nas confraternizações dos velhos.
Em 1964, fixou residência em Guimarães, passando a exercer a sua actividade de
advogado nesta comarca.
Em
1966, o jornal O Comércio de Guimarães
atravessou por problemas sucessórios (era, desde que foi criado em 1884, uma
empresa familiar), na sequência do falecimento de Matilde Machado, até aí a sua proprietária
e directora do jornal. No dia 1 de Julho, o nome de Artur Anselmo aparece no
cabeçalho do jornal, como editor e director interino, “por generosa escolha dos
herdeiros da finada Senhora D. Maria Matilde C. F. Machado”, como explica num
texto de apresentação, em que se afirma “soldado militante da Causa Monárquica” e apresenta a linha editorial que o jornal iria prosseguir sob a sua direcção, mais do que perfeitamente alinhada
com as orientações do Estado Novo. Dirigiu o jornal até ao dia 8 de Abril de
1967, data em que bateu com a porta, na sequência da publicação, sem o seu conhecimento e ao arrepio das suas determinações, de “uma
local difamatória e injuriosa” não assinada que, sem o nomear, visava o eng. Hélder Rocha.
No
ano em que pela primeira vez assistiu às festas Nicolinas sem “gastar dinheiro
em transportes, para as viver entusiasticamente”, por já residir em Guimarães, Artur
Anselmo tinha publicado no jornal Notícias de
Guimarães um texto em que evocava os seus tempos de estudante em Guimarães
e as festas dos “tempos felizes de outrora”.
Recordar
é viver
Quis
Deus que, neste Outono, sem crepúsculos tristes, antes alumiado por um Verão
constante de S. Martinho, eu fixasse residência nesta linda cidade de
Guimarães, onde fui escolar do liceu e menino colegial, no lustro de 1922 a
1927, e sempre, muitas vezes e todos os anos, busquei seu termo e confina, para
regalo do meu espírito, e para sentir, tranquilo, feliz e cheio de serenidade
ao abrigo de todas as maldades e arrelias, a graça adorável do meu viver.
Considero
triunfal o evento, e venturosa a realidade verificada.
É
que, aos meus nove anos de idade, já mutilado com a orfandade de Pai e Mãe, vim
duma linda aldeia de Monção para esta cidade, receber a instrução secundária na
Escola Académica, então implantada na
Rua Val-de-Donas e frequentar simultaneamente, o velho Liceu Martins Sarmento.
Tenho
presente a luz da bonança que poisou, no meu coração de criança, quando aqui cheguei.
Foi
também num entardecer, como o de hoje, — com frescas visões de risos fugazes do
Sol em caminho do seu ninho do oiro e púrpura — que cheguei a Guimarães, então
cidade gritante na sua indústria e a modos de quem precisava de ganhar
dinheiro, muito depressa, para meter Ágata num palácio. Enquanto eu esperava
pelo amanhã misterioso, tendo nos
meus lábios, como diria o poeta Eugénio de Castro, cálices de amor e, nos olhos, urnas
de esperança, era avisado, por pressentimento misterioso cor-de-rosa, —
olhando as pedras morenas do seu castelo, suas torres medievais, seus templos
de rendilhados lavores esculturais, a pérola roxa de seus poentes, seus
lânguidos e fortes horizontes, — de que me ia aparecer, pela vez primeira, sob
a abóbada infinita num céu azul, a Fada,
que eu sabia existir, pelos contos descritos, com tanta ternura e meiguice,
pela minha Santa Avó, nas longas noites do Inverno do Alto Minho.
Sim,
a Fada que dava, às crianças bem
comportadas, entre sorrisos Amoráveis, nuns fios de oiro, no vento
desprendidos, a vara do condão que
faria talhar, a nosso gosto e querer, o itinerário lio destino, sempre com o
fulgor dos nítidos diamantes duma felicidade permanente, e com o humor jovial
dos triunfos e sucessos, em série.
Na
realidade eu vi, nesse dia distante de Outubro de 1922, em Guimarães, a Fada daqueles contos que, com a cabeça em
mim pendida, a minha Santa Avó me anunciava, certamente para que eu não me amortalhasse,
eternamente, no uto pesado da minha orfandade.
Vi
e vivi essa certeza durante a minha puberdade. Pena foi que o destino tivesse,
com a força com que meus velhos e queridos companheiros das Nicolinas, — o Chico
Jordão, o António Mota Prego e o Bento Machado — rompiam as peles dos bombos, na
noite do Pinheiro, quebrado o saquitel lírico dessa minha visão de menino, pálido
e loiro, e hoje guardo, na minha alma, esta recordação, como o pó do vidro daquele pequenino anel, de que fala o poeta, Manuel Bandeira.
Mas,
o certo é que, sempre ficaram gravadas, como dedadas afirmativas, no barro da minha
frágil condição humana, esta cidade, e esse meu viver, de 1922 a 1927.
Nunca
me esqueci de meus Mestres e dos Directores do meu colégio.
Disse,
sempre a meus filhos,— (e queira Deus que o possa dizer o meus 4 netos) que nunca
houve, em Portugal, liceu com mais sábios mestres como o do Martins Sarmento,
de 1922 a 1927, e que Directores do Colégio, como o foram os Padres José Maria da
Silva e Gaspar Nunes (estes, infelizmente, já falecidos) e Padre José Carlos Simões
de Almeida e Manuel Pedrosa (estes, felizmente, ainda com vida, saúde e
espírito para educarem meus Netos), nunca mais aparecerão, em qualquer estabelecimento
de ensino, pois ninguém os igualaria — por mais visitas que haja à estratosfera,
e por mais inventos da ciência que se glorifiquem, — em méritos, em bondade, em
saber, em inteligência, como educadores
da juventude.
Outrossim
jamais olvidei os meus companheiros do Liceu.
Hoje,
uns são Professores universitários, Ministros Plenipotenciários, grandes advogados,
notáveis médicos, sábios magistrados, distintíssimos profissionais, competentíssimos
e considerados industriais e comerciantes, honradíssimos Chefes de Família,
todos, gente de boa moral e carácter íntegro, e outros, infelizmente, como eu,
só podem legar aos vindouros o orgulho de terem sido bons nicolinos e rapazes que
nunca parcelaram, em suas almas, a aspiração humana para uma beleza superior.
*
* *
Nas
festas Nicolinas do ano, em que não tenho de gastar dinheiro em transportes,
para as viver entusiasticamente — como é meu velho hábito — escrevendo esta mal
alinhavada prosa quero lançar um repto aos nicolinos de todas as gerações e
idades.
É
este: Venham sempre a Guimarães, nestes dias, mesmo que vivam longe e tenham de
lançar imprecações contra a viagem demorada e incómoda.
Estar
em Guimarães a assistir às Festas Nicolinas, por mais avançada que seja nossa
idade, e mais difícil o nosso andar, é recordar tempos felizes de outrora,
tempos de paz e amor, é encontrar a ideal da verdadeira resignação, que faz
enxugar as lágrimas das nossas dores, amaciar as rugas de nossas quezílias e faz
o rejuvenescimento das nossas almas.
Se
o Outono faz cair as folhas mortas das ramadas, também é debaixo do céu baixo e
triste do Inverno, que melhor o nosso coração escuta as árias da nossa mocidade
distante e melhor voz tem a recordação da vida passadas.
Eu,
por mim, sou ver se encontro outra vez, nas Festas Nicolinas deste ano, a Fada que me apareceu em Outubro de 1922
— e depressa fugiu sob o esbarrondar soturno dos revezes da vida — a maior parte
das vezes causados pelos homens, e ao arrepio do querer de Deus.
E…
Vivam as Nicolinas!!!
Guimarães,
ao entardecer do dia 24 de Novembro.
Artur Anselmo
Notícias de Guimarães, 29 de
Novembro de 1964
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