Na
noite de 7 de Novembro de 1980, o arquitecto Fernando Távora deu uma notabilíssima
lição de história urbana de Guimarães, no salão nobre do Convívio, no âmbito da
comemoração do aniversário daquela associação cultural vimaranense. O
conferencista conduziu a audiência numa viagem pela história da cidade e pela
evolução da sua forma urbana”, para concluir, como registou o (então) jovem repórter de
O Povo de Guimarães, que a cidade (“a glória do homem”) “deve desenvolver-se
respeitando o seu passado e, acima de tudo, aqueles que nela habitam: os homens”.
Palavras que, como bem sabemos, não foram só palavras, já que se materializaram
no exemplar processo de requalificação urbana de Guimarães, de que Fernando
Távora foi o principal ideólogo e mentor.
No
Convívio, Fernando Távora traçou a evolução histórica da cidade como proposta
para o futuro
Numa
iniciativa inserida nas comemorações do 19.° aniversário da sua fundação, o
Convívio promoveu na passada sexta-feira um colóquio em que o arquitecto
Fernando Távora, professor da ESBAP e responsável pelo “Plano Director de
Guimarães”, dissertou, perante uma sala repleta, sobre a “Forma urbana de Guimarães”.
A
apresentação do orador convidado esteve a cargo de Edmundo Campos que, enquanto
presidente da Câmara, fora encarregado de convidar o Fernando Távora para
presidir à elaboração duma proposta de Plano Director da Cidade.
A forma e a geografia
Fernando
Távora, recorrendo à ilustração visual fornecida por alguns cartogramas de
Guimarães, transportará a audiência através de uma viagem pela história da
cidade e pela evolução da sua forma urbana. Utilizando um dito célebre de um
professor de Direito Romano de Coimbra iniciou o seu discorrer pelos dois
milénios de ocupação humana desta terra afirmando que “Guimarães começou por
não existir”...
A
cidade de Guimarães existe encravada numa depressão em concha entre os ribeiros
de Santa Luzia e de Santa Catarina (Costa) que entroncam no ribeiro de Couros,
afluente do rio Selho. Esta concha estende-se em direcção ao poente, abarcando
Pevidém.
Nos tempos dos castros e dos romanos
A
primeira ocupação regular de que há notícia nesta zona é a ocupação castreja,
civilização pré-romana que ocupou o noroeste peninsular. Pela arqueologia ou
pela toponímia sabe-se da existência no nosso concelho de diversos crastos (ou
castros). Eram pequenas povoações que, por motivos defensivos, se situavam nos
altos, geralmente próximos de cursos de água com uma economia de tipo pastoril
e de recolecção de frutos, com destaque para a bolota. Fernando Távora citou
diversos exemplos deste tipo de habitat
humano, nomeadamente os estudados por Martins Sarmento e por Mário Cardoso.
Com
a romanização e a subsequente pax romana,
as gentes dos altos foram progressivamente descendo para as encostas, dando-se
uma revolução na economia, que se toma essencialmente agrícola, podendo
recorrera terrenos facilmente cultiváveis. Deste movimento nos deu conta o
orador. A ocupação romana vai-se destacar fundamentalmente pelas suas estradas.
Destas, três braços secundários passavam próximas da zona actualmente ocupada
pela cidade. Tinham origem em Bracara
Augusta (Braga) e dirigiam-se para sul em direcção a Viseo (Viseu). Deste período, para além de alguns marcos miliários
e de outros vestígios detectados aqui ou além, nada há a destacar (Fernando
Távora, como o fez notar, referia-se apenas à cidade, excluindo as Caldas das
Taipas e de Vizela, à altura centros com certa importância).
Obra de uma mulher: Mumadona Dias
O
núcleo original de Guimarães vai surgir por iniciativa da Condessa de Mumadona,
que funda um Mosteiro (a actual Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira). Nesses
tempos conturbados (estávamos no século X) de fluxos e refluxos de movimentas
invasores, a existência do mosteiro gera a necessidade da criação de um esquema
defensivo. Assim se vai erguer a torre do Castelo. Desta forma, Guimarães vai
surgir sem que existissem as condições necessárias à formação de um centro
urbano, isto é, não era banhada por um grande curso fluvial, nem era
atravessada pelo traçado de uma das grandes vias romanas. Guimarães, nasce como
o acentuou Fernando Távora, por iniciativa de uma mulher, Mumadona Dias.
Em
torno deste núcleo inicial posteriormente amuralhado, vai-se desenvolver
Guimarães. Durante toda a Idade Média, a cidade cresce espartilhada pela cinta
apertada das muralhas de D. Dinis.
Progressivamente,
a economia vai-se desenvolvendo no sentido de deixar de ser exclusivamente de
auto-suficiência. Desenvolvem-se a agricultura, as indústrias e o comércio.
Nesta altura, as rotas de comunicação não são já no sentido norte/sul, mas em
direcção ao Porto e ao mar. É assim que vemos, como o mostrou o Arq. Távora,
desenvolverem-se as duas saídas em direcção ao Porto: por Santo Tirso e por
Famalicão. Desta forma, Guimarães desenvolve-se de costas para o interior, para
Fafe e Celorico, e face voltada para poente, para o mar.
A “revolução do milho” e os solares
A
expansão marítima trouxe também reflexos para a forma urbana de Guimarães. A
importação do milho da América do Sul (fins do séc. XVII, inícios do XVIII) vai
da origem à “Revolução do Milho”. Tendo encontrado boas condições de expansão
nas terras do Minho, o milho rapidamente se transforma na base da alimentação
do minhoto. A sua cultura, que está na origem do arroteamento de longas
extensões de terras, está também na origem duma forma de habitação com
características urbanas: o solar.
O
período iluminista do Marquês de Pombal também deixou a sua marca em Guimarães.
Data desse período o único exemplo de arquitectura
programada da nossa cidade. Trata-se da ala nascente da praça de eleição da
nossa cidade, o Toural, resultante da demolição da muralha. Aquela longa
fachada comum a diversas casas é obra projectada pelas homens do Marquês.
Na era do comboio e da recta
Chegamos
à Idade Moderna. Estamos no tempo dos grandes avanços no campo dos meios e da
velocidade de transporte. Estamos na era das doutrinas modernistas e da descoberta de que a menor distância
entre dois pontos é a recta. Constroem-se novas e mais rápidas vias de
comunicação. Surgem os comboios e as estações de comboio. Os centros urbanos desenvolvem-se
em volta daquelas. Em Guimarães tudo isto aconteceu: a estação de comboios e as
ruas adjacentes são disso prova cabal.
E agora: que futuro?
Percorrido
este percurso milenar, Fernando Távora chegou aos nossos dias. Nas três últimas
décadas, Guimarães cresceu extraordinariamente, num movimento marcado pela
desconcentração e logo pela desconsertação de quem se propõe traçar o seu plano
director. Uma cidade que continua a crescer a cada dia que passa. Uma cidade
que espartilhou uma zona medieval que, existindo estanque, mais se assemelha a
uma múmia de museu. Uma cidade onde já se erguem torres mais altas e mais
coloridas do que a torre do castelo. Que futuro para uma cidade como esta?
O
Arq. Fernando Távora, no plano que se encontra em elaboração, apresenta uma
proposta de desenvolvimento por pólos. Desenvolvimento que continua de
imprevisível evolução e, desde logo, de difícil ordenação. Mas a ordenação é
necessária para que a cidade, a glória do Homem — como lhe chamou Fernando
Távora — não se transforme num monstro de cimento armado com uma amostra medieval
“para inglês ver”. A cidade deve desenvolver-se respeitando o seu passado e,
acima de tudo, aqueles que nela habitam: os homens. Esta a principal conclusão
que se retira desta notável conferência que o Convívio organizou.
António Amaro das Neves
O Povo de Guimarães, 13 de
Novembro de 1980
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