Fotografia de Carlos Mesquita |
Uma das razões que ajudam a perceber porque é que da presença de
Raul Brandão em Guimarães não resultou uma clara apropriação do seu nome e da sua
obra como património vimaranense, decorre da ideia de que o escritor pouco terá
escrito sobre a cidade que adoptou como sua, que parece ignorar que a intriga das obras maiores da sua produção ficcional de Raul Brandão, A Farsa
e Húmus, decorre nas ruas e praças de Guimarães.
A Vila de Raul Brandão é triste, encardida, pobre, enegrecida, espectral, onde a humidade se entranha na pedra e o sol se entranha na humidade. Olhamos
em volta e temos dificuldade em reconhecer nela a Guimarães de hoje, acolhedora e ciente da sua beleza. Mas esta cidade, onde só a espaços somos capazes de reconhecer a
vila de Raul Brandão, apesar dos seus muitos séculos de história, é uma cidade
nova de poucas décadas. Em meados do século XX, ainda permanecia quase como Brandão a descreveu, como o mostra um texto que Manuel Mendes, um
dos grandes estudiosos e divulgadores da obra de Brandão, que Santos Simões publicou
em 1961, no suplemento cultural do Notícias
de Guimarães, em que percorre os espaços da cidade de Guimarães donde surgem as figuras e os cenários da
obra de Raul Brandão.
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Donde surgem as figuras e os cenários da obra de Raul Brandão
Há meses já, por um tempo chuvoso e triste — para aquelas bandas o
Inverno é sempre húmido e melancólico —, demorei a minha estadia em Guimarães
por três ou quatro dias. Conheço a cidade de ali passar de quando em quando,
mas desta vez foi mais prolongada a minha estadia. De costume, são as
sacramentais visitas ao Castelo e ao Museu da Colegiada, a que nunca falta o
passeio de fugida pelos sítios mais típicos que oferece a estranha cidade.
Dessa vez, porém, ocupado o dia com o trabalho que ali me levou, tinha as
noites livres, e pus-me a correr os meandros mais intrincados do velhíssimo
burgo, as ruelas esganadas entre prédios, as quelhas e os becos, aquelas
estreitas passagens abertas no meio de altos paredões de granito, cobertos de
um musgo negro e a escorrer uma humidade que repassa a pedra e repassa os
ossos.
Por toda a parte, os bairros pobres das cidades, dão a mesma
sensação desoladora, confrange a miséria, parece que irremediável, que se patenteia
nas coisas e nas criaturas. O quadro repete-se com uma uniformidade
impressionante. Aqui, porém, só me fazia saltar à lembrança certos cenários,
certas personagens da obra de Raul Brandão, escritor que para estas bandas por
largos anos viveu. A atmosfera dir-se-ia exactamente a mesma, o quadro
idêntico, as cores sombrias de igual modo pesadas e húmidas, de uma opacidade
mortal, e os vultos que via esgueirarem-se pelas portas, feridos da mesma
agonia, ou a transcender no seu sonho simultaneamente trágico e grotesco. A
sensação que me envolvia tornava-se obsidiante, invencível, e olhava para cada
um, murmurando para mim mesmo o seu nome — o Gebo, o Pita, a Candidinha, a
Luísa, o Gabiru... E se, por entre as portas ou as janelas, lobrigava, à luz
mortiça dos candeeiros, algum trecho de casa, com os seus miseráveis trastes, a
sensação tornava-se ainda mais pungente e desgarradora, como se de imprevisto
lhes entrasse na intimidade.
Câmara Reis escreveu, no seu comovido estudo sobre a obra e a
figura de Raul Brandão, que “uma das características mais interessantes da sua
arte, já o acentuámos, é a universalidade. Lemos, por exemplo, Os Pobres, e ficamos ignorando a origem
étnica das personagens e onde se desenrola a acção dramática. Lisboa? Paris?
Londres? Petrogrado? Nova-lorque? ia quase a dizer Shangai ou Pequim?
Ignoramo-lo. Há o Prédio, o Hospital, a Cidade, a Floresta, entidades
alucinadas e incoerentes. Em alguns dos seus livros, a própria matéria, inerte
na aparência, se agita num vago sonho e tem uma voz que não ouvimos, pela
imperfeição da nossa sensibilidade”. E estas palavras de Câmara Reis também me
acudiam à lembrança nas minhas digressões nocturnas, a caminhar encolhida e
melancolicamente, sob a poeira insistente da chuva e a humidade daquele frio
letal, chapinhando na lama do empedrado. Com efeito, nunca o cenário de obra
sua se situa seja onde for. O que ali se vive e no reino particular da sua
fantasia de homem alucinado, aflito da mais atormentada piedade humana. A acção
deste seu arrastado drama passa-se algures, onde os homens sofrem e sonham,
agonizam nas eternas dores, estremecem nas esperanças vãs. Há aqui um portal de
escada negro como a boca do abismo, há ali uma árvore que de velha e tonta se
põe a florir no Inverno, e por toda a parte corre a regueira inestancável do
mesmo enxurro. E é tudo. As personagens sonâmbulas do seu drama também são
fundamentalmente meia dúzia, a correrem pressurosas e desvairadas, de um livro
para o outro, vibrantes de tragédia, de quimera e de grotesco. Assim é, com
efeito. Nilo nos diz donde surgem as figuras, nem palavra sobre o lugar da
acção — todo o mundo e ninguém, ao mesmo tempo algures e nenhures.
Mas naquele deambular de morcego pelas velhas ruelas de Guimarães,
na noite negra e chuvosa, a cada passo eu ia identificando um local ou um
quadro, reconhecendo um vulto. Naquela casa suspeita, talvez tenha sido onde
morreu a Mouca, entre soldados, ladrões e o Pita filósofo, que não resistiu a
botar fala: — “A morte, rapazes, ensina. Não há lição mais formidável. É
doloroso e ao mesmo tempo pacifica. Ver morrer, enche de grandes ideias,
filhos!...”. E quem é o fantasma daquele velho gorducho e chorão, que
envergonhadamente pede esmola pelos recantos mais sombrios? É o pobre Gebo que
suplica alguma coisa, de mão estendida, justificando a miséria com o mais
triste dos arrependimentos: — “Tenho pena de ter sido honrado...”. Meu pobre
Gebo! E é todo o cortejo que encontro, no mesmo cenário descrito pelo grande
escritor. Não falta uma figura, o pano de fundo e as bambinelas da cena são as
mesmas.
Abro ao acaso Os Pobres
e leio as primeiras linhas de um capítulo: “Noite de chuva, desta chuva miúda
que enlameia e entristece como uma angústia. Na rua, Sofia passa com o xaile de
rastro...”. Até a chuva, senhores, até a figura desta rapariga, que passa a meu
lado com um ar de desgraça que arrepia. Tudo parece evocado deste mundo, nas
particularidades de certas notas e na atmosfera que envolve as coisas no mesmo
tom de sombra e desventura.
Sei que parte da sua obra a começou antes de vir para Guimarães, e
que já na História de um Palhaço
aparecem estes ambientes soturnos e as mesmas personagens aflitas, a clamarem
as repetidas palavras de quem vive num sonho e vive na arrastada agonia. Mas
nos quadros de Os Pobres e do Húmus, por exemplo, a evocação chega a
ser flagrante.
Não tenho a certeza, mas suspeito que eram estes recantos da rua
que ele tinha diante dos olhos, quando se sentava à mesa de trabalho, perto do
lume, na sua casa da Nespereira, que dista daqui um salto.
E levado na fascinação deste sentimento, a calcorrear sobre a
lama, empapado até aos ossos desta chuva miúda mas teimosa, eu demorava-me até
tarde, no meu divagar de homem perdido, pelas ruazinhas sombrias da cidade tão
velha...
Manuel
Mendes
In Artes e Letras, suplemento do Notícias
de Guimarães, n.º 25, ano III, 26 de Novembro de 1961
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