Não posso dizer que me espante a discussão que vai pelos muros das indignações instantâneas em que, com frequência, se transformam as redes ditas sociais, a propósito de um incidente despoletado por um grupo de alunas de uma das escolas de Guimarães que, em nome de uma causa meritória, a da igualdade de género, participaram no cortejo das maçãs em lugar que sempre foi território de rapazes. Não vou, por falta de tempo e de paciência, alongar-me na polémica que para aí vai, onde me parece que mora uma manifesta confusão de conceitos, misturando-se a luta pela igualdade de género com questões, bem diversas, de identidade e de papel social de género. De repente, as raparigas envolvidas naquela situação quase são transformadas nas Emmelines Pankhursts dos tempos modernos e o seu acto é classificado de rebelde, irreverente e corajoso e os que que torcem o nariz a tais epítetos são acusados de "parolice machista", para citar o que um amigo escreveu algures.
Não me parece que faça sentido esta controvérsia.
Desconheço
quais sejam as motivações e o ideário das raparigas que participaram no cortejo
das maçãs deste ano. Ao que se percebe, pelo que é público, a sua acção não
resultará de um acto de irreverência e de rebeldia de germinação autónoma e espontânea. Se
tivesse resultado, teriam direito a toda a minha admiração, mas, ao invés, decorre,
assumidamente, do cumprimento do projecto educativo do agrupamento de escolas a
que pertencem, tendo tido a intervenção directa de professores, certamente bem-intencionados,
mas que parecem ignorar a natureza das Festas Nicolinas, que sempre foram contra o sistema.
E do sistema fazem parte, como sempre fizeram, as escolas, os professores e
os seus projectos educativos. Irreverência? Não. Antes pelo contrário.
O que parece seguro é que esta história não traz
grande benefício, nem à causa da igualdade de género, nem às Festas Nicolinas.
Porém, é possível aproveitá-la para uma reflexão bem amadurecida e fundamentada
acerca do estado a que chegou aquele que era, e deveria continuar a ser, o
momento mais alto das festas dos estudantes de Guimarães a S. Nicolau, o dia do
padroeiro, 6 de Dezembro. O cortejo é cada vez mais pobre: a generalidade dos
carros são monumentos à falta de criatividade, já não há mascarados nem representações
de teatro de rua (as velhas danças e folias). Para exemplo, basta atentar no carro que está na origem da polémica: uma camioneta
coberta de pano branco com umas inscrições mal traçadas a tinta vermelha, carregando
estudantes “mascarados” com t-shirts
verdes. Eis o espelho da triste indigência a que chegaram as maçãzinhas, onde
apenas refulge alguma da sua antiga grandiosidade quando as lanças se erguem ao
alto. É esta pobreza franciscana que deveria ser motivo de inquietação e de discussão
entre os que se preocupam com a coisa nicolina. O resto, é fruta da época,
eventualmente inconsequente.
Não tenho nenhum preconceito contra a mudança nas festas.
Antes pelo contrário, sei bem que foi a sua capacidade de adaptação ao correr
dos tempos que assegurou, mais do que a sua sobrevivência, a sua vitalidade. E
acredito que já é tempo, há muito tempo, de repensar o Cortejo das Maçãzinhas, devolvendo-lhe
o brilho de outras eras, sem que isso implique necessariamente um regresso ao passado.
Vamos a isso?
*
O modo como os estudantes de Guimarães enchem a cidade
para celebrar o dia do seu padroeiro mudou muito ao longo dos séculos que as suas
festas já levam. E continuará a mudar, para que as festas não morram. Em meados
do século XX eram como A. L. de Carvalho as retratou, no texto que se reproduz
abaixo.
~*~
A
entrega das “maçãzinhas” às damas
—
seu significado poético
De todos os números das Nicolinas aquele que mais vale pelos seus efeitos espectaculares, pela sua graça e gentileza, é a oferta das “maçãzinhas” às Damas[1].
O prosaísmo da época
actual não se apercebe da elegância, do feminil encanto deste “torneio”.
Essencialmente
consagrado ao Eterno Feminino, não admira que, para ver passar este cortejo as janelas se
guarneçam de senhoras, ou mais destacadamente, de meninas, pois são estas, em
nossos dias, as que mantêm a tradição, colaborando com a sua presença e a
permuta das suas lembranças, na linda festa de cunho medieval.
Na verdade, para bem
se colher uma ideia do encantamento poético deste número das Nicolinas, torna-se preciso reconstituir o panorama romântico dos
tempos idos. Nessa visão do passado, a mulher é entrevista por detrás de
janelas com rótulas — “rançoso e melancólico uso das rótulas de pau que os
antigos portugueses, no dizer de um monógrafo portuense do século XVIII, se figuravam recatar a
honestidade de suas famílias”.
Não eram janeleiras as
mulheres dos séculos pretéritos. Ao facto se refere um poeta espanhol, dizendo:
Toda a
donzela, de casa
não sai, até que se casa.
Quando lograva pôr na
rua o seu pé, ia sempre acompanhada.
O seu próprio
guarda-roupa, excessivamente discreto, ajudava a ocultá-la.
A mantilha, a
mantilheta, o bioco, a coca, eram peças dominantes do traje feminino.
Nos meados do século
XVIII, os bisonhos veladores dos rostos femininos, eram deste modo alvejados
por Garrett:
Bioco negro
De onde mal se vislumbra
Raro lampejo de celeste face:
Oh! quem o rasgasse!
Só em tardes de
procissão, com as ruas juncadas de ervas cheirosas e as varandas guarnecidas de
damascos, as cativas donzelas se mostravam. Aliada a esta concepção de
liberdade, desenrolava-se o cortejo das “maçãzinhas”, como réstia de sol
esbatendo a sombra.
Anda o caso recordado nos
versos do Bando Escolástico de 1828:
À mais guardada e tímida donzela,
Se concede este dia de janela.
*
Já vimos quais foram
as origens e os primeiros personagens na entrega das maçãs às damas.
A
prática
deste acto era da iniciativa dos “Meninos do Coro” da extinta Colegiada.
Visavam um objectivo maneirinho. Davam maçãs, para receber qualquer outra
coisa.
Por isso as maçãs eram oferecidas,
prosaicamente, em açafate.
O Pregão de 1870, alude ao acto por este
teor:
Ao colher,
das cestinhas p’ró regaço,
Rubicundas maçãs
com trêmulo braço,
Raiava em
vossas faces um sorriso,
Que nos faz
lembrar o Paraíso.
O acto dos “Meninos do
Coro” observava-se, sem aparato público, no dia de S. Nicolau.
Aqueles “mocinhos” que
o
praticavam,
tinham em vista, repito, receber mercê.
Transferido o costume
para os Estudantes, estes revestiram-no, por maneira romântica, de uma grinalda
de festa.
O acto passou a
embelezar-se dos engalhes de galanteria
Procurando os antigos
escolares na vida social vimaranense um acto de inspiração,
encontraram-no naqueles esplêndidos torneios que tinham lugar no rossio do Toural — espectáculos
elegantes aos quais concorriam os mais adestrados e garbosos cavaleiros do Entre-Douro-e-Minho.
É certo que na oferta
das “maçãzinhas" às damas — o número mais galhardo e gentil das festas Nicolinas — não se observa luta,
não há desafios, não se ferem, sequer, competências.
Por
isso, ao termo da “batalha”, pode dizer-se:
todos
triunfam!
A
alegria,
as gratas emoções que se experimentam neste recontro, são prémio abonde.
A
divisa da juventude escolar na oferta das “maçãzinhas”, é esta:
—
Ser amável ao belo sexo!
*
Há
pontos
de contacto entre este número das Nicolinas e os antigos torneios de Cavalaria.
Vejamos:
a) A formação do cortejo
escolástico para a oferta das “maçãzinhas”, é constituído por uma cavalgada de faustoso aparato. O mesmo se verificava
nos antigos torneios da Cavalaria medieval.
b)
Os cavalos
ajaezados com talizes e gualdrapas e os Estudantes vestindo à fantasia, têm semelhança com os “mantenedores”
dos aludidos recontros, considerados à velha lei da Nobreza, — “flor da cortesia,
da honra e do valor”.
c)
A lança
empunhada pelos lidadores deste número Nicolino, ofertando nela a
maçã, tem por igual certa analogia com o acto final dos antigos torneios, quando os cavaleiros iam
ofertar na sua lança à dama do seu pensamento o troféu alcançado na liça.
Os escolares que no
cortejo das “maçãzinhas” tomam parte, usam enfeitar a sua lança com fitas
multicores.
Igualmente a guarnecem
com uma espécie de “mascote”.
Tanto esta “mascote”
como as fitas, com legendas e bordados, são oferta feminina.
Aqui se reproduz uma lança,
tendo no seu remate um simbolizado coração ofertando a maçã.
Por entre fitas multicores, sonhos... cor-de-rosa |
A. L. de Carvalho, O São Nicolau dos Estudantes, 2.ª edição, Guimarães, 1956, pp. 123-126
[1] Estas “maçãzinhas”, como em açucarado diminutivo as
denominam, também são conhecidas por “maçãs dos estudantes”.
0 Comentários