Em 1875, Ramalho Ortigão (1936-1915) publicou um roteiro sobre os lugares de
veraneio da moda, ao tempo, as estâncias termais. O livro tem o título de Banhos de caldas e águas minerais
e abre-o uma deliciosa introdução do escritor Júlio César Machado onde compara
história e dos portugueses de antanho nas águas oceânicas, com as novas
façanhas dos portugueses seus contemporâneos que, se já não atravessavam os
mares, faziam longas viagens de comboio para irem beberricar água fétida em
lugares remotos:
…mas, a própria descoberta da América, que talvez seja o facto mais considerável da história do mundo, pela influência que exerceu no andamento da humanidade, com o abrir tão vasto campo de explorações à actividade europeia, não se me afigura empresa superior à que se pôs em prática, de conseguir que os portugueses fechem a porta de sua casa, metam a chave no bolso, e vão por aí fora com a sua família em caminho de ferro e em diligências, beber água daqui a cem léguas!
O prefaciador fecha o
seu prefácio com uma sentença:
Sempre que temos sido grandes, o havemos devido às águas. Mas agora já seria caturreira querermos ser heróis por ter andado ao de cima delas; façamos melhor: bebamo-las!...
A peregrinação de Ramalho Ortigão pelas estâncias termais
portuguesas começa pela província do Minho, tendo visitado, nomeadamente, as
caldas de Vizela e as Caldas das Taipas. Este capítulo encerra com a descrição
de uma cidade que, entre as que ficam mais próximas de estabelecimentos
termais, se deve “especializar, como a mais digna de atenção e de estudo,
Guimarães”. Esta é uma peça que tem sido muitas vezes citada, em
diferentes textos e contextos, e que agora aqui se reproduz na íntegra.
~*~
[Guimarães]
Entre as cidades do Minho mais próximas das principais Caldas deve-se especializar, como a
mais digna de atenção e de estudo, Guimarães.
A pequena cidade de Guimarães é a mais rica de Portugal, a mais
trabalhadora, a de mais recursos próprios e independentes de todo o favor
alheio. Sustenta umas poucas de indústrias importantíssimas: a dos panos de
linho, a da cutelaria, a das linhas e a do couro, cujos produtos espalha por
todo o país e exporta para o Brasil e para a África.
Além da ourivesaria e principalmente das filigranas e das obras de
malha de prata, quase todas feitas na freguesia de S. Cosme, o Porto não tem
outra indústria que se compare
com as de Guimarães.
Lisboa — inútil é dizê-lo — não tem indústria nenhuma que se
sustente independente do favor do Estado e da protecção das pautas, do que
resulta uma riqueza equívoca e uma prosperidade fabril cuja importância nunca
chegamos a compreender senão de um modo excessivamente ambíguo.
Guimarães, no meio do movimento interior do seu trabalho, de uma
feição essencialmente moderna, conserva nos seus aspectos exteriores o fundo
cunho tradicional, antigo, legitimamente português.
Extremamente abastada e poderosa, Guimarães não faz senão
violentamente e em grau muito restrito concessão alguma às invasões espúrias da
moda alheia e da modernidade. Conserva os seus velhos usos e costumes, os seus
antigos hábitos, com a rigidez severa de um burguês honrado que despreza as
futilidades vaidosas dos parvenus, e que tem princípios sólidos, convicções firmes,
inquebrantáveis e propriamente suas.
É por esse lado tradicional que Guimarães é profundamente
interessante para as observações da arte e para a educação nacional do espírito
e do carácter.
São geralmente imperfeitos os homens nascidos nas grandes cidades,
criados e educados nesses centros internacionais, em que os costumes, os princípios,
as ideias, as mesmas palavras, os próprios aspectos da natureza pouco e pouco
se deturpam, se desgastam da sua feição primitiva, se desnacionalizam — porque
assim o digamos — no contacto das civilizações estrangeiras. Falta a esses
homens a feição de raça, a marca indelével imposta ao carácter pela influência
de certa porção de solo, de certo e determinado meio moral. Em todas as
manifestações do espírito: na arte, no teor de vida, no gosto, na moda, os
homens assim destemperados na sua íntima fibra perderão lentamente a inspiração
original, a faculdade inventiva, o dom criador e o ponto de vista crítico. Cairão
na inspiração de segunda mão, no espírito de imitação, na exageração aflechada
e burguesa ou na trivialidade chata, incolor e insípida.
Para as minhas necessidades como consumidor de camisas, de
gravatas, de luvas e de perfumarias, o Chiado oferece vantagens superiores às
que me proporcionam alguns outros sítios mais obscuros do reino. Mas para mim, cidadão, para mim, português, para mim, escritor e artista —
que o Chiado me perdoe — acho-o
insignificante, incaracterístico, ordinário, sem feição, sem
relevo, sem linha, e prefiro-lhe a angustiada e escura rua dos Gatos em
Guimarães, com os seus estreitos portais, as suas escadas empinadas e as suas miúdas
gelosias encanastradas como as do coro dos mosteiros, pela qual rua a antiga diligência
do Porto entrava no berço da monarquia com um eco
estrepitoso e pesado, ao som dos estalos do chicote e das campainhas das
parelhas, aos solavancos da berlinde pelos buracos da calçada toscamente lajeada.
É claro que não é nosso intento inculcar Guimarães, berço
da monarca, como sendo igualmente o berço da crítica e da poesia nacional,
nem deixar crer que os futuros artistas e filósofos tenham de vir
exclusivamente de Braga, de Santarém ou de Amarante.
O que pretendemos simplesmente notar é que a literatura de um povo
— e damos o nome de literatura a toda a escrita colectiva do pensamento — vive
dos dois elementos combinados do progresso e da tradição, e que por maiores que
sejam os desenvolvimentos produzidos pelo estudo comparativo das civilizações,
o talento tenderá a abastardar-se
sempre que se não inspirar no espírito nacional que o gerou.
É em tal sentido que nos parece duplamente saudável que os que
viajam no Verão em Portugal, os que percorrera as suas terras de Caldas no
interior das nossas províncias se banhem na genuína tradição popular, o específico
reconstituinte da adoentada alma portuguesa.
Braga conserva ainda em algumas das suas velhas ruas o aspecto
mourisco que mais particularmente distingue Guimarães.
Ramalho Ortigão, Banhos de caldas e águas minerais, Livraria Universal, Porto, 1875,
pp. 50-51
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