Na obra que dedicou aos Banhos de caldas e águas minerais
portugueses, Ramalho Ortigão descreve uma povoação protegida pela
sombra de magníficos carvalhos, onde a “paisagem é
belíssima, de uma grande frescura verde, de uma serenidade inefável”, onde há vacas que atravessam o
rio, “a nado ou a vau”, e “a natureza vegetal assoberba um pouco e absorve
quase a natureza animal”, fazendo despertar uma “vaga sensação panteísta”. Ao
longo daquelas páginas, Ramalho fala das esfolhadas do milho nos casais, dos “extraordinários coros de sopranos” que
as acompanham e “que se ouvem de grandes distâncias” e da pesca das “magníficas
trutas” que povoavam o rio e davam “um excelente emprego para a pesca à linha ou à cana”.
E fala também, claro, dos banhos nas águas termais, “claras e límpidas,
cheirando fracamente a ovos chocos.
Vale a
pena ler a prosa que o autor de As Farpas dedicou às Caldas das Taipas. Aqui fica.
~*~
Caldas das
Taipas
Nos estudos do snr. Agostinho Vicente Lourenço*, acima citados, lê-se, com referência
às águas das fontes de Santo António das Taipas, o seguinte:
“Estão situadas no distrito de Braga, distantes pouco mais ou
menos 8 quilómetros de Guimarães e Braga. As águas brotam em abundância, no meio de um
terreno aprazível, por quatro fontes, de onde são conduzidas aos banhos; são claras e
límpidas, cheirando fracamente a ovos chocos, pouco mineralizadas, e lêem de
temperatura 29 a 30o; 1.000 gramas de água contem 0gr,00242
de ácido sulfídrico, e deixam pela evaporação 0gr,2035 de resíduo
sólido, composto principalmente, como o das águas de Vizela, de silicatos e
cloretos alcalinos e de sais calcários e magnesianos.”
Conquanto geralmente menos concorridas que Vizela, as Caldas das
Taipas oferecem grande animação durante a estação balneária, que começa no fim
de Maio e acaba no fim de Outubro.
Há um hotel a preços módicos, perto dos banhos, e muitas casas
mobiladas para alugar.
A povoação é quase inteiramente ensombrada pelas largas copas de magníficos carvalhos. A paisagem é belíssima, de uma grande frescura verde, de uma serenidade inefável.
Ao fim das tardes no mês
de Setembro o ar
tranquiliza-se inteiramente;
não bole folha; cai um grande silêncio; distinguem-se as vozes mais distantes, o chiar de uma nora, o ladrar de um cão, uma mulher que chama, ao
longe.
As vacas, que recolhem das pastagens, atravessam o
rio a nado ou a vau, seguidas de um rapaz montado numa velha égua felpuda e trazendo adiante de
si um grande molho de erva, de que sobressaem as flores amarelas dos prados.
A natureza vegetal assoberba um pouco e absorve quase a natureza animal. Os bois e os operários dos campos parecem coisas integrantes do
solo.
Sente-se uma vaga sensação panteísta.
Logo que vem a noite, em Setembro,
principiam as esfolhadas do milho nos casais, e é então que se ouvem de grandes
distâncias os extraordinários coros de sopranos, tão admirados já no século
XVII pelo marquês de
Montebelo, feitos de grandes massas de vozes entoando em terceiras uma lenta
melodia extremamente singela, de uma sentimentalidade saudosa, elegíaca, de que
se conjuga uma harmonia terna e dolente, que parece saída da vibração eléctrica
do luar ou emanada das profundidades dos lagos, como o coro resignado das
ondinas.
É nestas cantigas das esfolhadas que se
improvisam as quadras populares, que são a mais genuína expressão poética da
alma portuguesa essencialmente melancólica e namorada.
Alto vai o
sete-estrelo,
Mais alto vai o
luar,
Mais alta vai a
ventura
Que Deus tem para me
dar!
É nestas cantigas que se fazem os lamentos, as
queixas, as confidências ternas:
Eu quisera ser o
linho
Que vós na roca
fiais,
Para vos dar tantos
beijos
Quantos vós no linho
dais.
Em Inglaterra há várias sociedades
literárias, de senhoras, que têm por fim recolher todas as cantigas, todas as
lendas, todos os cantos populares perdidos na tradição dos campos. As senhoras
que fazem parte destas simpáticas
corporações apontam e coligem nas suas viagens, nas suas digressões, nos seus
passeios, todos os elementos da epopeia popular que encontram dispersos no seu
caminho. Depois essas notas são reunidas, cotejadas, comparadas umas com outras
até se poder ligar e fixar a versão. Este meio, adoptado em Portugal, seria o
mais adequado para a formação do romanceiro e do cancioneiro português.
O rio Ave, que corre junto das Taipas,
é povoado de magníficas trutas, que dão um excelente emprego para a pesca à linha ou à cana.
A pesca feita à cana é geralmente
considerada como um passatempo estúpido, ridículo, próprio de velhos caturras
caídos em idiotismo. Esta opinião é inteiramente errada. A pesca à linha feita
com a mosca, segundo os processos ingleses, é muito engenhosa, demanda uma
grande destreza no modo de lançar a linha, que deve cair no rio, a distancia do
pescador, sem produzir a mínima ruga na superfície da água; requer ainda um grande hábito
de ver os infectos que habitam as vizinhanças dos rios e que deslizam sobre a
água. Estes insectos não são os mesmos em todas as estações do ano nem em todas
as horas do dia, e é o aspecto deles que tem de ser imitado pela mosca
artificial colocada pelo pescador um pouco acima do seu anzol. Com o
conhecimento destes pormenores e com bons aparelhos de pesca, o pescador não adormece
debaixo de uma árvore com a sua linha mergulhada na água. Num rio regularmente
povoado, deverá um peixe morder o anzol durante o espaço que este leva a
percorrer a distância que medeia entre o ponto a que foi lançado e aquele em
que se acha o pescador. Foi assim que o autor destas linhas, em companhia do seu querido
amigo o bravo capitão Luís Burnay, falecido na campanha do Paraguai, pescou de uma vez no rio Ave, perto de
Santo Tirso, vinte e duas trutas em poucas horas.
Todas as comunicações
do homem
com a natureza são um subsídio para a educação do espirito e do caracter, e
encerram sempre a fecundação de uma virtude. A pesca à linha inspira o
sentimento da perseverança e o amor das coisas simples e modestas. É o exercido
mais próprio para o divertimento das mulheres e dos homens casados: daqueles que vivem na economia, na ordem, na
responsabilidade da satisfação e do conforto modesto dos pequenos ménages.
As águas sulfúreas das Taipas só em
1753 principiaram a ser aplicadas aos usos médicos. Quem primeiro ensinou quais
fossem as suas virtudes terapêuticas foi um leigo carmelita de Braga, Cristóvão
dos Reis, administrador da botica do seu convento da Descalcez. É pena que não
haja no sítio uma lápide singela que comemore o nome desse pobre químico obscuro e benemérito. Em
compensação deste esquecimento há no paredão das Taipas, ao descer do terreiro
do arvoredo para o lugar dos banhos, duas inscrições em verso, uma à direita,
outra à esquerda de uma fonte, perpetuando os nomes dos promotores daquela obra.
Eis as
inscrições a que nos referimos:
“João, primeiro rei
do reino-unido,
“Para que a morte
mais troféus não conte,
“De inexaurível,
salutar bebida
“Esta levanta
milagrosa fonte.”
“Eras vindoiras!
desejais os nomes
“Dos varões claros d esta obra autores?...
“Sousa, procurador,
juiz Estêvão,
“Couto, Pinto,
Ataíde, senadores.”
Os referidos senadores não se
contentaram em imortalizar assim os seus nomes juntamente com o de sua
majestade D. João VI; ao lado de uma ara romana, conhecida pelo nome de Ara de Nerva desde os tempos de D. João de Barros, autor da Descripção d'Entre Douro e Minho, mandaram os de Guimarães gravar esta
inscrição:
“Para alívio da humanidade, e remédio
de rebeldes doenças herpéticas, foram renovados e aumentados estes banhos
termais, por ordem do senado da câmara da vila de Guimarães, sendo seu
presidente o Dr. Juiz de Fora Estêvão Pereira da Cruz, e vereadores Francisco
Cardoso de Menezes Ataíde e António do Couto Ribeiro; secretário José Leite
Duarte; procurador Manuel Luís de Sousa: — em testemunho do seu zelo e
actividade, e para emulação dos vindouros, eles mesmos (!) mandaram gravar esta inscrição, que desafia e venera o tempo
e a antiguidade. Em 1818.”
Esta prosa emparelha dignamente com
aqueles versos e sustenta com eles um terrível empate de burlesco, espectáculo
que constitui nas Caldas das Taipas uma das não menos interessantes
curiosidades do sítio.
No estabelecimento dos banhos das
Taipas há nove casas, tendo cada uma delas a sua tina de pedra. Cada banho é
alimentado por uma nascente, exceptuando os banhos n.os 3 e 6, que
recebem águas de outros banhos, além das que lhes provêm de pequenas nascentes.
Há ainda uma nascente perto destas, que não está aproveitada e uma outra que
alimenta a bica que fornece a água para beber. A nascente do banho n.° 9, de
que foram recolhidas as amostras enviadas à exposição de Paris em 1867, fornece
34:500 litros em vinte e quatro horas. Avalia-se o dispêndio total em cerca de
250.000 litros diários. O número dos banhos em Maio regula por uma média de
600; em Junho 6.000; em Julho 6.000; em Agosto 200; em Setembro 4.000; em
Outubro 400. Total dos banhos durante a estação: 17:200.**
Ramalho Ortigão, Banhos de caldas e águas minerais,
Livraria Universal, Porto, 1875, pp. 33-37.
*
Agostinho
Vicente Lourenço, pioneiro da química em Portugal (1822-1893). Entre os seus
estudos, contam-se análises químicas a nascentes de águas minerais de Portugal,
que abrangeu as nascentes de águas termais da região de Guimarães, em Vizela e
nas Taipas. [AAN]
** Informação
oficial do engenheiro João Baptista Schiappa de Azevedo, num relatório datado
de Outubro de 1867.
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