O fontanário da Oliveira, numa estereoscópia de Antero Frederico de Seabra (1858) |
Vai
muito seco este Outono. Dizem que estamos em seca estrema e que, felizmente,
amanhã voltará a chover, talvez. Não fosse o tanto se falar no assunto, quase
não teríamos percebido que a situação existe, persiste e é grave. É que a água
não nos falta nas torneiras. Secas, com todas as classificações (fracas, suaves,
moderadas, graves, extremas ou excepcionais), sempre as houve. Noutros tempos, as consequências da escassez de chuva como a deste ano seriam muito
graves. O que agora nos vale, é termos um sistema de abastecimento público de água
muito eficiente. Bendito seja.
Sobre a falta (e o excesso) de chuva e de água, escrevi, há uma
dúzia de anos, para o que comemora o centenário do abastecimento público em Guimarães,
um texto que, pela actualidade que torna a ter, agora aqui volto a partilhar.
A água do Céu
Tendemos
a acreditar que, no passado, a meteorologia teria, na sucessão das estações do
ano, uma regularidade aproximada da constância do tempo cronológico. Ao Verão
quente e seco, sucedia o Outono, mais fresco e chuvoso, que acabava no Inverno,
que era frio e molhado, a que se seguia a Primavera, de tempo mais ameno, se
bem que húmido. O ritmo da vida dos homens seguiria a marcha do tempo
cronológico e meteorológico e o calendário agrário ajustava-se a essa
regularidade. Esta visão idealizada do clima de outrora está longe de corresponder
a realidade vivida pelos nossos antepassados.
A
verdade é que as inconstâncias meteorológicas não são, longe disso, apenas uma
realidade dos nossos dias. Aliás, no passado, os seus efeitos eram bem mais
nefastos do que nos nossos dias. Olhando para os registos de que dispomos do
passado, facilmente se conclui que a tal irregularidade dos elementos que
compõem o clima era, afinal, bastante normal.
No
passado, o maior problema que afectava a população da região de Guimarães, como
a de qualquer outro lugar, no que respeita aos elementos meteorológicos,
prendia- se com a água, ou seja, com a pluviosidade: muitas vezes, a chuva
faltava, secando a terra e impedindo que frutificasse; outras caía em excesso,
inundando os campos, destruindo sementeiras e dificultando a recolha dos
frutos.
Para
o passado remoto, não
possuímos registos meteorológicos quantitativos precisos. Não obstante, dispomos de outros
elementos que nos permitem perceber até que ponto as variações climáticas
afectavam a vida das gentes. É possível compilar, por exemplo, nos registos
existentes nos nossos arquivos, informação acerca das procissões de preces e
das penitências a que as populações recorriam para intercederem para que
chovesse ou para que fizesse sol. Partindo destes registos, podemos construir
um exemplo esclarecedor: um homem que tivesse nascido em Guimarães em 1821 e
que tivesse gozado uma longevidade excepcional, para o tempo, sobrevivendo até
ao último dia do século em que nasceu, dos oitenta anos que teria durado a sua
existência, em trinta e dois registaram-se crises meteorológicas. Ao longo da
sua vida, teria sido testemunha, porventura participante, de inúmeras
manifestações em que as gentes se apegavam ao seu último recurso, a fé, para
implorarem chuva, em tempo de seca, ou rogarem por sol, em tempo em que a chuva
não parava de cair. Algumas
dessas crises, pelas suas consequências, deveriam ter ficado profundamente
gravadas na sua memória.
Assim
teria sucedido, muito provavelmente, com as inclemências meteorológicas do ano
de 1838. O Inverno iniciado em 1837 foi marcado por muitas chuvas, que
começaram a cair com particular inclemência no início de Dezembro. No final de
Fevereiro, um grande temporal provocaria cheias nos rios da região, havendo
então notícia de um acidente com um caixeiro que foi arrastado pelas águas,
quando atravessava o rio Ave, no pontilhão das Taipas. O homem salvou-se, a
custo, mas perdeu-se
o macho em que viajava. Pelos dias que se seguiram, continuou a
chuva, acompanhada por trovoadas e quedas de granizo. No dia 16 de Maio, como
consequência da chuva e da água que se acumulava no solo, aluiu parte da ponte
de Santa Luzia. No final desse mês, o cónego José Pereira Lopes, que deixou um
precioso registo da vida em Guimarães ao longo de várias décadas do século XIX,
anotaria no seu diário:
Até ao fim deste mês, houve grandes e copiosas chuvas, de maneira
que as chuvas que houve desde a Primavera até este tempo, juntas com as que
houve antes da Primavera, fizeram que este ano fosse um ano de tanta chuva,
como não havia exemplo há muitos anos.66
O
mau tempo continuaria, até que, no dia 3 de Julho, Pereira Lopes registou no
seu diário: foi o primeiro dia em que não esteve tanto frio. Os estragos da longa
invernia tinham sido enormes. Mas aquele terá sido sol de pouca dura, já que,
em meados de Novembro, se realizaram preces na Colegiada e em outras igrejas da
vila, pedindo sol, para se poder fazer as colheitas, que estavam uma
grande parte por fazer, por causa das muitas e continuadas chuvas que tinham
havido em todo o Outono, não se tendo recolhido uma terça parte do pão.
Esta
crise iria prolongar-se até ao pino do Verão de 1839. No dia 1 de Agosto,
Pereira Lopes escreveu no seu diário que aquele foi o primeiro dia de
calor que houve neste ano (apenas tinha havido um ou outro dia mais quente) tendo havido na
primavera e parte do estio chuvas e bastante frio.
O
ano de 1847 foi igualmente terrível, mas, desta vez, por causa da falta de
chuva. Por essa altura, ainda o cónego Pereira Lopes escrevia o seu diário. No
mês de Julho, sucederam-se
na vila as preces ad petendam pluviam, implorando-se por
chuva, pois a seca e o calor tinham impedido que nascessem os restivos, não havendo esperanças
de que as terras secas dessem fruto algum.
No
dia 3 de Agosto, uma procissão correu as ruas, com algumas irmandades
e bastante povo, pedindo que Deus Nosso Senhor desse chuva. Todos os dias havia
orações nas igrejas, porque a seca era grande, a ponto de se recear
uma grande falta de pão. Novas procissões percorreram as ruas da cidade no dia
5 e no dia 11. No dia 12, ao princípio da tarde, entrou em Guimarães a imagem
do Senhor de Ínfias, acompanhada de muitas irmandades da aldeia e imenso
povo, até das Caldas de Vizela e outras povoações, aos quais se lhe reuniu
muita gente da vila. No dia 20, voltou a chover em Guimarães. No dia 25, a
milagrosa imagem do Senhor de Ínfias, que tinha estado recolhida na
igreja das Dominicas, regressaria à sua ermida, pelo mesmo caminho que
percorrera quando viera para Guimarães, indo acompanhada por imenso
povo, tanto da vila, como da aldeia, assim como com as mesmas Irmandades que a
tinham acompanhado para a vila. Mas a inclemência do tempo ainda não tinha terminado:
só no início de Outubro é que voltaria a chover em Guimarães, pondo termo a uma
seca como já há muito tempo não lembrava.
As
consequências tinham sido terríveis. Durante o mês de Agosto, tinha morrido,
segundo Pereira Lopes, uma imensidade de crianças de bexigas e diarreias,
havendo dias que morriam oito e dez. No dia 3 de Setembro, foram sepultadas três crianças,
das muitas que tinham sido vítimas das moléstias da quadra, bexigas e diarreia. O cronista daqueles
dias de desastre acrescentava que pessoas adultas tinham morrido algumas, mas não foram
muitas, mas crianças não havia um só dia que não morressem muitas. As crianças eram, de
facto, as mais vulneráveis às afecções de carácter infeccioso que facilmente se
propagavam nos períodos de calor e de seca, em que as águas escasseavam e em
que se recorria, muitas vezes, ao abastecimento com águas impróprias para
consumo humano.
As
contingências meteorológicas, especialmente as secas cíclicas que devastaram
esta região em finais do século XIX, contribuíram significativamente para que
se procurassem novas soluções de captação, condução, tratamento e distribuição
de água susceptíveis de assegurarem o abastecimento público sem descontinuidades, minimizando os efeitos de crises
que, no futuro, poderiam ter efeitos catastróficos.
In
Mãe-d’Água — Centenário do abastecimento
público de Guimarães, Vimágua EIM, Guimarães, 2007, pp. 74-76
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