A mulher minhota, por João da Rocha (4)

[continua daqui]

Continua a "monografia regional" sobre a mulher minhota que João da Rocha publicou em 1910 na Ilustração portuguesa. No capítulo que agora se publica, trata das crenças religiosas e supersticiosas, de que nos dá diversos exemplos curiosos.

Monografias regionais portuguesas

A mulher minhota (4)
RELIGIÃO E SUPERSTIÇÃO
Deus é para esta gente o pai supremo e bondoso, que a seu alvedrio dispõe dos frutos da terra e dirige as tormentas do céu. Tudo se fará “se Deus quiser”. A terra cansa, o gado morre, a colheita é escassa... Paciência! Será o que Deus quiser! O espírito da mulher minhota volta-se acanhado para a Providencia, mesmo nos transes mais usuais da vida. Por toda a parte, mormente  nos montes e outeiros, há capelinhas, nichos, ermidas, que a piedade dos fiéis mantém através de ritos pagãos. É um culto ingénuo e grosseiro. É um culto natural. Os missionários aproveitam-no como entendem, e até procuram desorganizar a família quando o homem, mais independente ou mais prático, prefere o trabalho real do seu braço ao favor virtual da Divindade. De ano para ano, numa dada época, conforme as freguesias, as mulheres abandonam os seus trabalhos, põem de parte os seus deveres caseiros, as suas obrigações, os seus filhos mesmo, e lá vão para a igreja, contas na mão, especialmente as velhas, ouvir os bons dos missionários falar dos castigos de Deus, dos pedreiros-livres, do inferno, das virtudes da confissão, da supremacia universal da igreja. Elas temem, coitadas, porque são supersticiosamente crentes. Há tantos pecadores por esse mundo! O que será delas quando a morte vier. No seu coração infantil aninha-se a intolerância e o temor. O Deus da vida que perdoa, transforma-se no Deus da morte que castiga. Afasta-se dos que amam a natureza e cantam e se divertem. Desfia os seus pecados, num plangente murmúrio, ajoelhada e com a saia a tapar-lhe a cara, junto à relha do confessionário. Mas, como no fundo do seu ser se não pode dissipar de todo o apego às coisas do mundo e às venturas da terra, serve-lhe de alívio censurar os outros, repreender os outros, meter medo aos outros. O seu espírito conserva-se, todavia, sempre indeciso. Nessas consciências crepusculares tudo se emaranha. Quem lhe dará conselhos? Só o padre, que representa Deus e conhece os segredos da “outra vida.” E o padre torna-se o juiz de todas as causas, procurador da Divindade. Nada se lhe deve negar, para que a vingança divina não flagele os casais.
Mas o clima impõe-se ainda, como as influências ancestrais, e nunca a mulher da beira-mar atinge o grau de misticismo em que por vezes cai a mulher sertaneja. Todavia é certo que, mesmo nas coisas profanas, um abafado capuz de superstição a oprime. Para a serrana, sobretudo, logo abaixo do padre está o curandeiro, ou melhor, a feiticeira. Toda a mulher minhota, com o avançar da idade, vai adquirindo farto cabedal de conhecimentos mágicos, rezas, esconjuros, colheita e preparo de ervas milagreiras e de órgãos de animais, com aplicação directa a moléstias e até a acidentes da vida. Para as lombrigas das crianças, já todos sabem que não há melhor remédio que um rosário de alhos. Livre-se alguém de passar por cima duma criança que gatinhe, porque a tolhe e o inocentinho não cresce. Por outro lado, criança que se veja a um espelho antes de começar a falar gaga fica, certamente. Ninguém mate um gato na sua propriedade, porque mete a miséria em casa. A esterilidade cura-se esfregando-se a mulher pela pedra da fecundidade. E certos santos são agentes terapêuticos de primeira ordem. S. Brás cura a garganta, S. Vicente as bexigas. Santo Amaro os males das pernas e dos braços, Santo Ovídio os ouvidos, Santa Luzia os olhos. Quem rezar um responso a Santo António encontra o que perdeu. No dia 24 de Abril ninguém trabalhe. É dia de S. Pedro de Rates. Se em alguma casa houver pessoa ou animal de esperanças e nesse dia um membro da família trabalhar ou pegar em tesouras é certo que o que nascer virá, pelo menos, aleijado.

Assim, quando alguém adoece, as mulheres da casa, não se fiando em médicos, fazem as suas promessas a Nossa Senhora ou a qualquer santo da sua devoção, e votos ou romarias à Senhora da Peneda, à Senhora da Cabeça, à Senhora de Agonia, ao Senhor do Alívio, a S. Torcato, etc., romarias e promessas que em geral cumprem nos dias das festas desses santos, para terem companhia e gozarem um pouco também.
João da Rocha, Ilustração Portuguesa, n. 216, Lisboa, 11 de Abril de 1910
Fotografias de Emílio Biel  C.ª

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